domingo, 24 de julho de 2011

O sofrimento de ter sofrido muito


Normalmente condeno aspas como lead de matérias jornalísticas. Em sua maioria, são artifício de preguiçosos. Mas provavelmente não haveria outra opção para a reportagem "Memórias da Adolescência", das jornalistas Mônica Manir e Carol Pires do Aliás do Estadão, em que contam a história de Nannette Konig, que passou parte de sua juventude com a autora do Diário de Anne Frank. "Esqueletas. Ambas", diz Nannette ao descrever como foi seu reencontro com uma das vítimas mais famosas do Holocausto nazista no campo de concentração alemão de Bergen-Belsen, em 1945. Apesar de iniciar com essas aspas, o texto deixa claro que as autoras escolheram a dedo as outras citações textuais da personagem. O objetivo foi ser literariamente fiel ao relato de Annette, em vez de contá-lo literalmente. "Não tinham mais carne; só os ossos do quadril saltavam. Enrolada num cobertor, Anne tremia feito vara verde. Despira-se das roupas empestadas de piolhos, mas não a tempo de evitar a contaminação pelo tifo endêmico. Deram-se um abraço seco, sem lágrimas", descrevem. Depois desse início, o texto me pegou, e tive de lê-lo até o fim. E, ao longo dele, me emocionei com a forma como a história foi conduzida e com a sabedoria de vida das raras aspas de Annette, em que fica explícito "aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito" (Fernando Pessoa). (Leda Balbino)


Sobre a chegada dos aliados que libertaram o campo: "Eles, os ingleses, não sabiam o que fazer com aquela pilha de cadáveres e aquela legião de gente esfomeada"


Resposta à pergunta de como conseguiu se salvar: "Sobrevivi porque não morri"


Reação ao pensamento, nas palavras das jornalistas, de que "não cabia mais sanidade no corpo": "Mas um dia acordei e falei para mim mesma: 'Você é órfã, e isso já é bastante difícil; pior ainda se for uma órfã louca'"


"Aos que dizem que é um gesto glorioso desencavar um inferno em vez de enterrá-lo": "Não é uma glória, é uma necessidade"


Reação à notícia de que um de seus netos morreu em uma avalanche, aos 15 anos: "Quando recebi essa notícia, pensei: eu não mereço. Mas a vida é assim mesmo, não é outra"

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Gratidão



Nos últimos anos, minha avó limitou-se a viver para não morrer. Ou, como bem diria o uruguaio Eduardo Galeano, "sobremorrer". E, nos últimos dois meses, sua luta diária sem prazeres além da comida que fazia questão de cozinhar, das novelas que acompanhava pela TV, das idas à igreja, da companhia de sua Bíblia e dos infindáveis exames de saúde, limitou-se a estar atada a uma cama de hospital.

Minha avó sempre teve uma vida dura, soube por minha mãe. Lavou roupas no rio. Passou outras com ferro à brasa. Matou porcos e galinhas para alimentar os filhos. Controlou o dinheiro com mãos de ferro. Como só teve educação para ler e escrever, não assistiu a filmes intrincados nem leu livros literários.

Minha avó nunca visitou o país de seus pais. Não aprendeu a falar sua língua. Não estudou um ofício para eventualmente ser bem paga por ele. Sua vida foi trabalhar para criar os seis filhos, dar-lhes melhores condições de vida, para que pudessem crescer e constituir suas famílias.

Ela nunca teve muitas papas na língua ou consideração pelas sensibilidades alheias. Se achasse que alguém engordou, falaria na hora, sem rodeios. E não era questão de idade, de que os mais velhos perdem o freio: ela era o tipo de pessoa que não se importa com que a pergunta "Como vai?" seja retórica. Ela sempre falaria a sua verdade. E por isso muitas vezes a temi.

A Dona Olga nunca representou para mim o estereótipo da boa velhinha, da avó terna, que teceria em lã um casaco quentinho para a neta. Para mim, ela sempre foi essa força da natureza independente, que nunca aceitou que lhe dessem ordens. Que lhe forçassem a se render. Que lhe fizessem aceitar que o tempo passa - e a todos varre.

Ela sempre lutou para permanecer. E por isso que vê-la fragilizada em uma cama de hospital, com aparelhos que respiravam por seus pulmões, recebendo injeções sem ter a consciência delas, foi chocante. Como se lhe fosse negada sua dignidade; como se tivessem desmentido sua fortaleza.

E enquanto a olhei, enquanto a vi conectada à vida pela fragilidade de máquinas, dei-me conta explicitamente de que ela foi minha origem. Os sacrifícios e lutas de sua geração foram determinantes para os avanços das seguintes. Sua história traçou a de meus irmãos, a minha. Ela é a minha herança.

A luta aguerrida de Dona Olga pela vida a trouxe lúcida aos 97 anos. Mas sempre chega o momento de nos render à morte. De dizer adeus. Agora, minha avó continua em mim. E a levarei comigo com gratidão. (Leda Balbino)