terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O inesperado de Cortázar

Conheci a obra de Julio Cortázar há mais de dez anos. Tinha lá meus 20 e poucos quando li Histórias de Cronópios e Famas e suspirei com o conto sobre o relógio ... "pense nisto: quando dão a você de presente um relógio, estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar". A partir daí, não parei mais. Ele entrou para minha lista dos escritores que sabem (e como sabe!) usar as palavras perfeitas para contar qualquer coisa. E qualquer coisa (a partir das palavras perfeitas) fica interessante. Depois li Diaro de Andrés Fava, Todos os Fogos o Fogo, O Jogo da Amarelinha. Mas o melhor ainda estava por vir. Estou terminando Papéis Inesperados, uma coletânea de achados incríveis do escritor argentino. Há contos, crônicas, poemas, discursos e textos tão pessoais que me fazem entender mais a literatura de Cortázar, sua história e a própria América Latina de quando eu era criança. O livro foi publicado há uns dois anos pela Editora Civilização Brasileira. Comprei assim que soube do lançamento e estou chegando ao final agora das mais de 450 páginas. Todos os textos foram encontrados numa gaveta por sua herdeira Aurora Bernárdez, em Paris, na residência em que escreveu o Jogo da Amarelinha. Textos já publicados e muita coisa inédita, inesperada, incrível. Uma obra póstuma que vale cada página. Papéis Inesperados é leitura obrigatória para quem coleciona Cortázar na mente. É leitura recomendável também para quem nunca leu nada do escritor. Na certa, esse primeiro leitor vai -- a partir desta obra -- procurar mais Julio Cortázar nas livrarias. (Daniela Diniz)

domingo, 24 de julho de 2011

O sofrimento de ter sofrido muito


Normalmente condeno aspas como lead de matérias jornalísticas. Em sua maioria, são artifício de preguiçosos. Mas provavelmente não haveria outra opção para a reportagem "Memórias da Adolescência", das jornalistas Mônica Manir e Carol Pires do Aliás do Estadão, em que contam a história de Nannette Konig, que passou parte de sua juventude com a autora do Diário de Anne Frank. "Esqueletas. Ambas", diz Nannette ao descrever como foi seu reencontro com uma das vítimas mais famosas do Holocausto nazista no campo de concentração alemão de Bergen-Belsen, em 1945. Apesar de iniciar com essas aspas, o texto deixa claro que as autoras escolheram a dedo as outras citações textuais da personagem. O objetivo foi ser literariamente fiel ao relato de Annette, em vez de contá-lo literalmente. "Não tinham mais carne; só os ossos do quadril saltavam. Enrolada num cobertor, Anne tremia feito vara verde. Despira-se das roupas empestadas de piolhos, mas não a tempo de evitar a contaminação pelo tifo endêmico. Deram-se um abraço seco, sem lágrimas", descrevem. Depois desse início, o texto me pegou, e tive de lê-lo até o fim. E, ao longo dele, me emocionei com a forma como a história foi conduzida e com a sabedoria de vida das raras aspas de Annette, em que fica explícito "aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito" (Fernando Pessoa). (Leda Balbino)


Sobre a chegada dos aliados que libertaram o campo: "Eles, os ingleses, não sabiam o que fazer com aquela pilha de cadáveres e aquela legião de gente esfomeada"


Resposta à pergunta de como conseguiu se salvar: "Sobrevivi porque não morri"


Reação ao pensamento, nas palavras das jornalistas, de que "não cabia mais sanidade no corpo": "Mas um dia acordei e falei para mim mesma: 'Você é órfã, e isso já é bastante difícil; pior ainda se for uma órfã louca'"


"Aos que dizem que é um gesto glorioso desencavar um inferno em vez de enterrá-lo": "Não é uma glória, é uma necessidade"


Reação à notícia de que um de seus netos morreu em uma avalanche, aos 15 anos: "Quando recebi essa notícia, pensei: eu não mereço. Mas a vida é assim mesmo, não é outra"

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Gratidão



Nos últimos anos, minha avó limitou-se a viver para não morrer. Ou, como bem diria o uruguaio Eduardo Galeano, "sobremorrer". E, nos últimos dois meses, sua luta diária sem prazeres além da comida que fazia questão de cozinhar, das novelas que acompanhava pela TV, das idas à igreja, da companhia de sua Bíblia e dos infindáveis exames de saúde, limitou-se a estar atada a uma cama de hospital.

Minha avó sempre teve uma vida dura, soube por minha mãe. Lavou roupas no rio. Passou outras com ferro à brasa. Matou porcos e galinhas para alimentar os filhos. Controlou o dinheiro com mãos de ferro. Como só teve educação para ler e escrever, não assistiu a filmes intrincados nem leu livros literários.

Minha avó nunca visitou o país de seus pais. Não aprendeu a falar sua língua. Não estudou um ofício para eventualmente ser bem paga por ele. Sua vida foi trabalhar para criar os seis filhos, dar-lhes melhores condições de vida, para que pudessem crescer e constituir suas famílias.

Ela nunca teve muitas papas na língua ou consideração pelas sensibilidades alheias. Se achasse que alguém engordou, falaria na hora, sem rodeios. E não era questão de idade, de que os mais velhos perdem o freio: ela era o tipo de pessoa que não se importa com que a pergunta "Como vai?" seja retórica. Ela sempre falaria a sua verdade. E por isso muitas vezes a temi.

A Dona Olga nunca representou para mim o estereótipo da boa velhinha, da avó terna, que teceria em lã um casaco quentinho para a neta. Para mim, ela sempre foi essa força da natureza independente, que nunca aceitou que lhe dessem ordens. Que lhe forçassem a se render. Que lhe fizessem aceitar que o tempo passa - e a todos varre.

Ela sempre lutou para permanecer. E por isso que vê-la fragilizada em uma cama de hospital, com aparelhos que respiravam por seus pulmões, recebendo injeções sem ter a consciência delas, foi chocante. Como se lhe fosse negada sua dignidade; como se tivessem desmentido sua fortaleza.

E enquanto a olhei, enquanto a vi conectada à vida pela fragilidade de máquinas, dei-me conta explicitamente de que ela foi minha origem. Os sacrifícios e lutas de sua geração foram determinantes para os avanços das seguintes. Sua história traçou a de meus irmãos, a minha. Ela é a minha herança.

A luta aguerrida de Dona Olga pela vida a trouxe lúcida aos 97 anos. Mas sempre chega o momento de nos render à morte. De dizer adeus. Agora, minha avó continua em mim. E a levarei comigo com gratidão. (Leda Balbino)

terça-feira, 24 de maio de 2011

Meu parque de diversão

Hoje decidi escrever sobre as casas dos livros: as livrarias e bibliotecas. A primeira vez que matei uma aula na vida foi, aos oito anos, quando tirei minha primeira carteirinha na biblioteca da escola. Fiquei escondida entre as estantes, devorando os livrinhos infantis, como A Curiosidade Premiada e Lúcia Já Vou Indo. Guardadas as devidas proporções, ainda faço a mesma coisa quando entro numa livraria. Perco as horas dentro delas, passeio pelas estantes, abro alguns livros, folheio, leio, releio. Livrarias para mim são como parque de diversão para criança. Passear por várias delas está entre o meu ritual sagrado de férias, onde quer que eu esteja. Em São Paulo, adoro andar pela Avenida Paulista e parar nas três maiores: Livraria Cultura, o shopping center dos livros; Fnac, onde eles não são tratados com tanto carinho (mas vale pelas promoções) e Martins Fontes, a minha preferida -- pela atmosfera, pela arquitetura, pelo silêncio. Em São Paulo, temos ainda a Livraria da Vila, irresistível em seu ambiente cool -- o que, infelizmente, atrai muita gente mais interessada em desfilar e tomar um cafezinho do que em literatura (o que só faz com que ela esteja sempre lotada aos finais de semana). E temos também as livrarias de shopping, como a Saraiva e Nobel que só servem para o urgente. Não tente encontrar nelas um título que não seja um autoajuda ou best seller (eu já tentei fazer isso algumas vezes e não consegui). Quando viajo, procuro também fuçar outras livrarias e bibliotecas. Em Lisboa, me encantei com a Bertrand, do Chiado, reconhecida -- dizem -- como a mais antiga livraria do mundo em atividade. Fundada em 1732, por lá passaram Alexandre Herculano e Eça de Queiroz. Linda, antiga, emocionante. A Biblioteca Joanina, do século XVIII, localizada no Pátio da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra carrega muito ouro brasileiro e é uma das mais espetaculares bibliotecas barrocas europeias. Vale a visita. A Biblioteca Pública de Nova York também merece ser espiada, assim como a de Vancouver, mais moderna, não menos aconchegante. Por fim, mas não menos encantadora, coloco a Ateneu, a livraria argentina que funciona num antigo teatro em Buenos Aires. Tudo ali combina: os livros, as cortinas, o café e os autores. Parada obrigatória para quem, como eu, gostar de perder horas entre as estantes. Se você é um deles, conte para a gente qual livraria ou biblioteca vale a pena ser visitada. Acima uma foto minha de 2008 na Ateneu, em Buenos Aires. (Daniela Diniz)

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Post mal humorado

Tive insônia esta noite. E o pior é que não conseguia voltar a dormir porque não parava de tocar na minha cabeça a nova coqueluche das redes sociais: "Oração", da Banda Mais Bonita da Cidade (http://www.youtube.com/watch?v=QW0i1U4u0KE). Se o fato de essa música ter grudado na minha cabeça como chiclete não é prova do quanto ela e a banda são ruins, seguem outros argumentos:

1. não dá para uma banca se autoproclamar a mais bonita da cidade. Um pouco de modéstia (ou, melhor, realismo), por favor;
2. o cantor principal se esforça, mas desafina em vários momentos;
3. a menina da flor na cabeça (que realmente tem uma voz bonita) aparece no vídeo com aquela cara "veja como estou feliz de cantar 'Oração'". Um tanto quanto irritante;
4. por último (e mais importante), a letra. Leiam:

Meu amor, essa é a última oração,
pra salvar seu coração
Coração não é tão simples quanto pensa,
nele cabe o que não cabe na dispensa (sic).
Cabe o meu amor,
Cabem três vidas inteiras,
Cabe uma penteadeira,
Cabem nós dois,
Cabe até o meu amor.

Isso é bonito, poético? Sete cabe/cabem. Rima pobre de oração/coração. Rimas paupérrimas de pensa/dispensa (em vez de despensa) e inteiras/penteadeira (hã?!?!). E tudo em uma repetição interminável de seis minutos?!?! Essa fórmula de bolo simplíssima para me dizer que o coração não é tão simples quanto pensa? Por isso que cada vez mais não curto o botão curtir do Facebook. Ele não dá espaço ao dissenso. Ainda bem que tenho o blog. #prontofalei (Leda Balbino)

terça-feira, 19 de abril de 2011

Sobre Jornalismo Literário

A primeira vez que ouvi falar em jornalismo literário foi há quase dez anos, na redação da Exame, por um dos editores que nos enviou um texto de Gay Talese. Fiquei encantada. Ali havia uma mistura mágica para mim: jornalismo de verdade contado em forma de romance. Na mesma época, a Cia. das Letras lançou sua coleção de jornalismo literário e pude aprender um pouco mais sobre isso, devorando alguns títulos. Primeiro Hiroshima, de John Hersey; depois O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell e, por fim, A Sangue Frio, de Truman Capote. Adorei todas as histórias e decidi fazer um curso simples e rápido sobre jornalismo literário. Eu, sendo jornalista, poderia também escrever histórias desse nível? A resposta, depois de três ou quatro meses de curso, foi clara: não, não posso. Ficou óbvio para mim que não é qualquer jornalismo (e também qualquer jornalista) que pode se aventurar pelo também chamado romance de não ficção. No meu caso, jornalista sempre voltada à área de negócios, isso soa quase ridículo. Na minha opinião, não dá para romancear reportagens sobre recursos humanos nas organizações ou ascensão profissional no mundo corporativo. Para fazer jornalismo literário precisa ter histórias de vida nas mãos e nem toda reportagem traz isso ou traz isso de forma abundante. O curso foi importante para eu entender que sou jornalista e leitora. E vejo isso como duas coisas diferentes. Faço jornalismo (com lead objetivo, com começo, meio e fim, com dados e números, com ganchos, com teses, com todo jargão da área) e leio romances – inclusive os de não ficção. E voltei à coleção da Cia das Letras, pelo Livro das Vidas, que traz os mais interessantes obituários do New York Times. E quanta vida há nessa literatura de jornal. Hoje, estou lendo Operação Massacre, do argentino Rodolfo Walsh e a história real de um fuzilamento no período sombrio da pré-ditadura argentina contada de forma tão literária já me prendeu – passei da página 80 rapidamente. Até agora, todos os livros que li da coleção jornalismo literário, da Cia. das Letras (e outros que não dessa editora, como o 102 Minutos, escrito por dois repórteres do NY Times, que narra o que aconteceu nesse intervalo de tempo em que as torres gêmeas caíram no 11 de Setembro) me encantaram. Se estou na dúvida de que título buscar para minha próxima leitura, não hesito em pegar um que tem como gênero o romance de não ficção. É quase certo que terei uma boa companhia literária com histórias cheias de vida nos próximos dias. (Daniela Diniz)

terça-feira, 29 de março de 2011

A Ficção da Ficção


Domingo fui assistir ao filme O Retrato de Dorian Gray, dirigido por Oliver Parker, com Colin Firth no papel de Lorde Wotton e Ben Barnes, como Dorian. Melhor do que ouvir as frases de Oscar Wilde na boca do ótimo Colin Firth, só lendo o próprio Oscar Wilde. Mas a nova versão de O Retrato não deixa muito a desejar aos amantes de Wilde, diferentemente do que li em outras críticas. Há ajustes, adaptações e até invenções (o Lorde Wotton, de Wilde, não era casado, por exemplo) mas nada que prejudique o tema central – o culto ao belo e ao prazer e a vida sem limites. Quando li O Retrato imaginei cenas exatamente como as que vi no filme: uma Londres vitoriana, escura e hipócrita; um Dorian ingênuo, superficial e um Wotton inteligente, sarcástico e manipulador. E isso me fez refletir sobre a diferença entre a literatura que lemos e a literatura que assistimos. Pois eu temi encontrar uma outra história quando li algumas críticas do gênero: “bom, mas muito diferente da obra original”. Para o crítico, se tratavam de duas literaturas: a de Wilde e a de Oliver Parker. Para mim, é única. E como isso é belo. Ao ler uma obra, você se desloca para um lugar e tempo em que sua imaginação constrói. E isso muda – de imaginação para imaginação. Muda de acordo com a pessoa, com a sensibilidade, com a criatividade de cada um. A minha percepção, no caso, esteve bem próxima a do diretor. E por isso mesmo, eu, que listo O Retrato de Dorian Gray entre minhas obras preferidas, recomendo o filme. Vale ouvir – ainda que diluídas – as brilhantes palavras de Oscar Wilde. (Daniela Diniz)