domingo, 24 de julho de 2011

O sofrimento de ter sofrido muito


Normalmente condeno aspas como lead de matérias jornalísticas. Em sua maioria, são artifício de preguiçosos. Mas provavelmente não haveria outra opção para a reportagem "Memórias da Adolescência", das jornalistas Mônica Manir e Carol Pires do Aliás do Estadão, em que contam a história de Nannette Konig, que passou parte de sua juventude com a autora do Diário de Anne Frank. "Esqueletas. Ambas", diz Nannette ao descrever como foi seu reencontro com uma das vítimas mais famosas do Holocausto nazista no campo de concentração alemão de Bergen-Belsen, em 1945. Apesar de iniciar com essas aspas, o texto deixa claro que as autoras escolheram a dedo as outras citações textuais da personagem. O objetivo foi ser literariamente fiel ao relato de Annette, em vez de contá-lo literalmente. "Não tinham mais carne; só os ossos do quadril saltavam. Enrolada num cobertor, Anne tremia feito vara verde. Despira-se das roupas empestadas de piolhos, mas não a tempo de evitar a contaminação pelo tifo endêmico. Deram-se um abraço seco, sem lágrimas", descrevem. Depois desse início, o texto me pegou, e tive de lê-lo até o fim. E, ao longo dele, me emocionei com a forma como a história foi conduzida e com a sabedoria de vida das raras aspas de Annette, em que fica explícito "aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito" (Fernando Pessoa). (Leda Balbino)


Sobre a chegada dos aliados que libertaram o campo: "Eles, os ingleses, não sabiam o que fazer com aquela pilha de cadáveres e aquela legião de gente esfomeada"


Resposta à pergunta de como conseguiu se salvar: "Sobrevivi porque não morri"


Reação ao pensamento, nas palavras das jornalistas, de que "não cabia mais sanidade no corpo": "Mas um dia acordei e falei para mim mesma: 'Você é órfã, e isso já é bastante difícil; pior ainda se for uma órfã louca'"


"Aos que dizem que é um gesto glorioso desencavar um inferno em vez de enterrá-lo": "Não é uma glória, é uma necessidade"


Reação à notícia de que um de seus netos morreu em uma avalanche, aos 15 anos: "Quando recebi essa notícia, pensei: eu não mereço. Mas a vida é assim mesmo, não é outra"

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Gratidão



Nos últimos anos, minha avó limitou-se a viver para não morrer. Ou, como bem diria o uruguaio Eduardo Galeano, "sobremorrer". E, nos últimos dois meses, sua luta diária sem prazeres além da comida que fazia questão de cozinhar, das novelas que acompanhava pela TV, das idas à igreja, da companhia de sua Bíblia e dos infindáveis exames de saúde, limitou-se a estar atada a uma cama de hospital.

Minha avó sempre teve uma vida dura, soube por minha mãe. Lavou roupas no rio. Passou outras com ferro à brasa. Matou porcos e galinhas para alimentar os filhos. Controlou o dinheiro com mãos de ferro. Como só teve educação para ler e escrever, não assistiu a filmes intrincados nem leu livros literários.

Minha avó nunca visitou o país de seus pais. Não aprendeu a falar sua língua. Não estudou um ofício para eventualmente ser bem paga por ele. Sua vida foi trabalhar para criar os seis filhos, dar-lhes melhores condições de vida, para que pudessem crescer e constituir suas famílias.

Ela nunca teve muitas papas na língua ou consideração pelas sensibilidades alheias. Se achasse que alguém engordou, falaria na hora, sem rodeios. E não era questão de idade, de que os mais velhos perdem o freio: ela era o tipo de pessoa que não se importa com que a pergunta "Como vai?" seja retórica. Ela sempre falaria a sua verdade. E por isso muitas vezes a temi.

A Dona Olga nunca representou para mim o estereótipo da boa velhinha, da avó terna, que teceria em lã um casaco quentinho para a neta. Para mim, ela sempre foi essa força da natureza independente, que nunca aceitou que lhe dessem ordens. Que lhe forçassem a se render. Que lhe fizessem aceitar que o tempo passa - e a todos varre.

Ela sempre lutou para permanecer. E por isso que vê-la fragilizada em uma cama de hospital, com aparelhos que respiravam por seus pulmões, recebendo injeções sem ter a consciência delas, foi chocante. Como se lhe fosse negada sua dignidade; como se tivessem desmentido sua fortaleza.

E enquanto a olhei, enquanto a vi conectada à vida pela fragilidade de máquinas, dei-me conta explicitamente de que ela foi minha origem. Os sacrifícios e lutas de sua geração foram determinantes para os avanços das seguintes. Sua história traçou a de meus irmãos, a minha. Ela é a minha herança.

A luta aguerrida de Dona Olga pela vida a trouxe lúcida aos 97 anos. Mas sempre chega o momento de nos render à morte. De dizer adeus. Agora, minha avó continua em mim. E a levarei comigo com gratidão. (Leda Balbino)

terça-feira, 24 de maio de 2011

Meu parque de diversão

Hoje decidi escrever sobre as casas dos livros: as livrarias e bibliotecas. A primeira vez que matei uma aula na vida foi, aos oito anos, quando tirei minha primeira carteirinha na biblioteca da escola. Fiquei escondida entre as estantes, devorando os livrinhos infantis, como A Curiosidade Premiada e Lúcia Já Vou Indo. Guardadas as devidas proporções, ainda faço a mesma coisa quando entro numa livraria. Perco as horas dentro delas, passeio pelas estantes, abro alguns livros, folheio, leio, releio. Livrarias para mim são como parque de diversão para criança. Passear por várias delas está entre o meu ritual sagrado de férias, onde quer que eu esteja. Em São Paulo, adoro andar pela Avenida Paulista e parar nas três maiores: Livraria Cultura, o shopping center dos livros; Fnac, onde eles não são tratados com tanto carinho (mas vale pelas promoções) e Martins Fontes, a minha preferida -- pela atmosfera, pela arquitetura, pelo silêncio. Em São Paulo, temos ainda a Livraria da Vila, irresistível em seu ambiente cool -- o que, infelizmente, atrai muita gente mais interessada em desfilar e tomar um cafezinho do que em literatura (o que só faz com que ela esteja sempre lotada aos finais de semana). E temos também as livrarias de shopping, como a Saraiva e Nobel que só servem para o urgente. Não tente encontrar nelas um título que não seja um autoajuda ou best seller (eu já tentei fazer isso algumas vezes e não consegui). Quando viajo, procuro também fuçar outras livrarias e bibliotecas. Em Lisboa, me encantei com a Bertrand, do Chiado, reconhecida -- dizem -- como a mais antiga livraria do mundo em atividade. Fundada em 1732, por lá passaram Alexandre Herculano e Eça de Queiroz. Linda, antiga, emocionante. A Biblioteca Joanina, do século XVIII, localizada no Pátio da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra carrega muito ouro brasileiro e é uma das mais espetaculares bibliotecas barrocas europeias. Vale a visita. A Biblioteca Pública de Nova York também merece ser espiada, assim como a de Vancouver, mais moderna, não menos aconchegante. Por fim, mas não menos encantadora, coloco a Ateneu, a livraria argentina que funciona num antigo teatro em Buenos Aires. Tudo ali combina: os livros, as cortinas, o café e os autores. Parada obrigatória para quem, como eu, gostar de perder horas entre as estantes. Se você é um deles, conte para a gente qual livraria ou biblioteca vale a pena ser visitada. Acima uma foto minha de 2008 na Ateneu, em Buenos Aires. (Daniela Diniz)

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Post mal humorado

Tive insônia esta noite. E o pior é que não conseguia voltar a dormir porque não parava de tocar na minha cabeça a nova coqueluche das redes sociais: "Oração", da Banda Mais Bonita da Cidade (http://www.youtube.com/watch?v=QW0i1U4u0KE). Se o fato de essa música ter grudado na minha cabeça como chiclete não é prova do quanto ela e a banda são ruins, seguem outros argumentos:

1. não dá para uma banca se autoproclamar a mais bonita da cidade. Um pouco de modéstia (ou, melhor, realismo), por favor;
2. o cantor principal se esforça, mas desafina em vários momentos;
3. a menina da flor na cabeça (que realmente tem uma voz bonita) aparece no vídeo com aquela cara "veja como estou feliz de cantar 'Oração'". Um tanto quanto irritante;
4. por último (e mais importante), a letra. Leiam:

Meu amor, essa é a última oração,
pra salvar seu coração
Coração não é tão simples quanto pensa,
nele cabe o que não cabe na dispensa (sic).
Cabe o meu amor,
Cabem três vidas inteiras,
Cabe uma penteadeira,
Cabem nós dois,
Cabe até o meu amor.

Isso é bonito, poético? Sete cabe/cabem. Rima pobre de oração/coração. Rimas paupérrimas de pensa/dispensa (em vez de despensa) e inteiras/penteadeira (hã?!?!). E tudo em uma repetição interminável de seis minutos?!?! Essa fórmula de bolo simplíssima para me dizer que o coração não é tão simples quanto pensa? Por isso que cada vez mais não curto o botão curtir do Facebook. Ele não dá espaço ao dissenso. Ainda bem que tenho o blog. #prontofalei (Leda Balbino)

terça-feira, 19 de abril de 2011

Sobre Jornalismo Literário

A primeira vez que ouvi falar em jornalismo literário foi há quase dez anos, na redação da Exame, por um dos editores que nos enviou um texto de Gay Talese. Fiquei encantada. Ali havia uma mistura mágica para mim: jornalismo de verdade contado em forma de romance. Na mesma época, a Cia. das Letras lançou sua coleção de jornalismo literário e pude aprender um pouco mais sobre isso, devorando alguns títulos. Primeiro Hiroshima, de John Hersey; depois O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell e, por fim, A Sangue Frio, de Truman Capote. Adorei todas as histórias e decidi fazer um curso simples e rápido sobre jornalismo literário. Eu, sendo jornalista, poderia também escrever histórias desse nível? A resposta, depois de três ou quatro meses de curso, foi clara: não, não posso. Ficou óbvio para mim que não é qualquer jornalismo (e também qualquer jornalista) que pode se aventurar pelo também chamado romance de não ficção. No meu caso, jornalista sempre voltada à área de negócios, isso soa quase ridículo. Na minha opinião, não dá para romancear reportagens sobre recursos humanos nas organizações ou ascensão profissional no mundo corporativo. Para fazer jornalismo literário precisa ter histórias de vida nas mãos e nem toda reportagem traz isso ou traz isso de forma abundante. O curso foi importante para eu entender que sou jornalista e leitora. E vejo isso como duas coisas diferentes. Faço jornalismo (com lead objetivo, com começo, meio e fim, com dados e números, com ganchos, com teses, com todo jargão da área) e leio romances – inclusive os de não ficção. E voltei à coleção da Cia das Letras, pelo Livro das Vidas, que traz os mais interessantes obituários do New York Times. E quanta vida há nessa literatura de jornal. Hoje, estou lendo Operação Massacre, do argentino Rodolfo Walsh e a história real de um fuzilamento no período sombrio da pré-ditadura argentina contada de forma tão literária já me prendeu – passei da página 80 rapidamente. Até agora, todos os livros que li da coleção jornalismo literário, da Cia. das Letras (e outros que não dessa editora, como o 102 Minutos, escrito por dois repórteres do NY Times, que narra o que aconteceu nesse intervalo de tempo em que as torres gêmeas caíram no 11 de Setembro) me encantaram. Se estou na dúvida de que título buscar para minha próxima leitura, não hesito em pegar um que tem como gênero o romance de não ficção. É quase certo que terei uma boa companhia literária com histórias cheias de vida nos próximos dias. (Daniela Diniz)

terça-feira, 29 de março de 2011

A Ficção da Ficção


Domingo fui assistir ao filme O Retrato de Dorian Gray, dirigido por Oliver Parker, com Colin Firth no papel de Lorde Wotton e Ben Barnes, como Dorian. Melhor do que ouvir as frases de Oscar Wilde na boca do ótimo Colin Firth, só lendo o próprio Oscar Wilde. Mas a nova versão de O Retrato não deixa muito a desejar aos amantes de Wilde, diferentemente do que li em outras críticas. Há ajustes, adaptações e até invenções (o Lorde Wotton, de Wilde, não era casado, por exemplo) mas nada que prejudique o tema central – o culto ao belo e ao prazer e a vida sem limites. Quando li O Retrato imaginei cenas exatamente como as que vi no filme: uma Londres vitoriana, escura e hipócrita; um Dorian ingênuo, superficial e um Wotton inteligente, sarcástico e manipulador. E isso me fez refletir sobre a diferença entre a literatura que lemos e a literatura que assistimos. Pois eu temi encontrar uma outra história quando li algumas críticas do gênero: “bom, mas muito diferente da obra original”. Para o crítico, se tratavam de duas literaturas: a de Wilde e a de Oliver Parker. Para mim, é única. E como isso é belo. Ao ler uma obra, você se desloca para um lugar e tempo em que sua imaginação constrói. E isso muda – de imaginação para imaginação. Muda de acordo com a pessoa, com a sensibilidade, com a criatividade de cada um. A minha percepção, no caso, esteve bem próxima a do diretor. E por isso mesmo, eu, que listo O Retrato de Dorian Gray entre minhas obras preferidas, recomendo o filme. Vale ouvir – ainda que diluídas – as brilhantes palavras de Oscar Wilde. (Daniela Diniz)

terça-feira, 22 de março de 2011

Descobrindo Benedetti

Faltam poucas páginas para eu terminar A Trégua, romance, meio novela, do uruguaio Mario Benedetti. Gosto da literatura latina -- da argentina, especialmente. Gosto também de Gabriel García Marques, Pablo Neruda, Octavio Paz. Mas do Uruguai eu só conhecia Eduardo Galeano. Fui apresentada à sua obra pelas mãos da Leda, que me deu nos meus já longíquos 20 anos, uma edição de O Livro dos Abraços. Fiquei apaixonada. Li depois um pouco de uma de suas obras mais famosas, As Veias Abertas da América Latina. Mas parei por aí. Voltei à literatura uruguaia agora pela obra de seu mais famoso ou querido escritor, Mario Benedetti, que faleceu em maio de 2009. E estou adorando. De leitura fácil, o livro descreve o diário de um viúvo pré-aposentado, prestes a fazer cinquenta anos. Relata suas angústias da vida pacata, monótona, vivida numa Montevidéu de 1960. Os dias simplesmente passeiam ao seu redor até que encontra uma moça, com metade de sua idade, por quem se apaixona. E sua rotina muda. E suas angústias também. Não teme mais somente a vida pós aposentadoria, a novidade do ócio, mas a vida sem sua nova companheira, a vida vista pelos olhos preconceituosos de seus filhos, dos poucos amigos. O livro fala de dramas comuns de hoje, vividos talvez, com intensidade diferente. O homem de 50 anos hoje pode temer a compreensão dos filhos ao apresentar uma moça de 25 como sua namorada (apesar de isso ser cada vez mais comum), pode temer a aposentadoria (embora aos 50 hoje, ele vai apenas começar a pensar nisso) e também pode sofrer calado ao descobrir que seu filho preferido é homossexual. A obra tem mais de 40 anos mas os simples dilemas da vida a tornam sempre atual. (Daniela Diniz)

terça-feira, 15 de março de 2011

Os livros da minha década

No ano passado, completei dez anos de anotações sobre os livros que leio. Embora o hábito da leitura tenha sido adquirido quando eu ainda era criança (lá pelos oito anos), somente em 2000 comecei a avaliar de forma mais crítica os livros que passaram pelos meus olhos e classificá-los de acordo com meu entusiasmo com a leitura. A forma de classificação é bem simples: vai de uma a cinco estrelas. Os mais estrelados recebem alguns comentários ao lado, sobre forma, conteúdo ou passagens que considerei fantásticas. Divulgo hoje a lista dos meus livros cinco estrelas, dos livros que marcaram a minha década*. (Daniela Diniz)

Cem Anos de Solidão (Gabriel García Marquez)

Ensaio sobre a Cegueira (José Saramago)

Ficções do Interlúdio (Fernando Pessoa)

Madame Bovary (Gustave Flaubert)

Memórias do Subsolo (Fiódor Dostoievsky)

Desonra (J. M. Coetzee)

Sagarana (João Guimarães Rosa)

A Hora da Estrela (Clarice Lispector)

Todos os Fogos o Fogo (Julio Cortázar)

Elogio da Sombra (Jorge Luís Borges)

Quando Fui Outro (Fernando Pessoa)

A Legião Estrangeira (Clarice Lispector)

Extremamente Alto & Incrivelmente Perto (Jonathan Safran Foer)

A Morte de Ivan Ilitch (Liev Tolstói)

O fio das Missangas (Mia Couto)

O Retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde)

*A lista não está classificada por ordem de preferência, mas por ordem cronológica de leitura

quarta-feira, 9 de março de 2011

O Idioma Pessoa

Eu e Dani temos uma tradição. Nos nossos respectivos aniversários sempre nos damos de presente um livro. De narrativas que adoramos. De autores que amamos ou esperamos amar. De textos que queremos descobrir. Esse foi o caso de “O Livro do Desassossego”, de Pessoa, que ela menciona no belo post abaixo. Ele foi o presente que ganhei dela em 2002 e, no ano seguinte, tornou-se um volume cheio de trechos sublinhados a lápis, de descobrimentos que me espantaram. Pessoa é o que é não necessariamente por tocar na inevitável sensibilidade da alma, mas pela força com que escreve, descreve, narra-se, dono completo de palavras que lhe servem como um idioma próprio. É no “Livro do Desassossego” que Pessoa revela: “Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.” (Leda Balbino)

“Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava – parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito”

“Na palavra falada temos que ser, em absoluto do nosso tempo e lugar. (...) A palavra escrita, ao contrário, não é para quem a ouve, busca a quem a ouça, escolhe quem a entenda, e não se subordina a quem a escolhe”

“(...) não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que, por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me deles era metade e semelhança da morte”

“De repente estou só no mundo. Vejo tudo isto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro”

“Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência”

“Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir – é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida. (...) Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem da luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser”

“(...) amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na paisagem”

“(...) se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. (...) Condillac começa o seu livro célebre, ‘Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos de nossas sensações’. Nunca desembarcamos de nós”

“Há em certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e coisas. E, tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que sou hoje. (...) Como avancei para o que era? Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? (…) Quanto sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?”

sexta-feira, 4 de março de 2011

Livro de Cabeceira

Sempre que lia ou ouvia essa expressão ‘livro de cabeceira’, não entendia muito bem. Especialmente naqueles ping pongs que revistas de celebridades fazem com famosos nos quais o entrevistador pergunta todas as coisas tolas, como qual seu filme preferido? sua música favorita? e comida? um lugar inesquecível? Pronto! Está lá também a pergunta: qual seu livro de cabeceira? Livro de cabeceira afinal é aquele que não sai do seu criado-mudo (e, portanto você nunca termina) ou aquele que você está lendo no momento? Era a pergunta que eu sempre me fazia. Sim, porque muitos livros entram e saem da minha..vamos lá, cabeceira. Até que comecei a ler O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa – ou Bernardo Soares, seu heterônimo. Na edição de bolso que tenho, da Cia das Letras, o livro – ou “O Livro” tem 524 páginas (sem contar as NOTAS FINAIS). O volume conta com 481 trechos, parágrafos ou pequenos textos (como queira definir) de prosa poética perfeita. Definições, delírios, alucinações, medos e preocupações – todos os sentimentos pensantes ou pensamentos sentimentais de Pessoa ou Soares estão ali. Não é um livro de contos, de poemas ou romance. Está mais para um diário sem tempo. E esse formato – e sua profundidade – permitem transformá-lo num perfeito livro de cabeceira. Daqueles que você abre antes de dormir, lê um dos trechos sem compromisso, sem remorso de ficar uma semana ou um mês sem pegá-lo novamente, pois o próximo trecho pode não ter nada a ver com o que você leu antes. E por isso mesmo, você pode dividir a leitura com outro livro. Sim, porque eu sou o tipo de leitora que gosta de ler um volume de cada vez. Nesse caso, não. O Livro do Desassossego virou meu livro de cabeceira. Está lá para alimentar algumas noites de insônia. O único risco que corro – e que já me aconteceu – é de passar um tempo desassossegada com alguns trechos como os que cito abaixo e, em vez de encontrar o sono, perdê-lo de vez. (Daniela Diniz)

“Eu de dia sou nulo e de noite sou eu”

“Vivo mais porque vivo maior”

“Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir”

“Quero ser eu sem condições”

“O único modo de estarmos acordados com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios”

terça-feira, 1 de março de 2011

Por que ler Mia Couto

Terminei de ler há alguns dias Terra Sonâmbula, romance do moçambicano Mia Couto. E entendi porque Mia, assim como Pessoa, Saramago, Guimarães Rosa, Borges e Cortázar entrou para a lista dos escritores que merecem mais de dois livros na minha estante. Mia, escrevi para um amigo querido e distante, não escreve; ele tece palavras. Domínio de poucos. Descreve com simplicidade o mais complexo dos sentimentos e de forma profunda relata as coisas simples da vida. Um exemplo que ficou na memória: Tuhair, o velho personagem de Terra Sonâmbula, não ensina simplesmente Muidinga, o personagem menino, a andar, falar, comer. Ele lhe ensina, nas palavras de Mia, “todos os inícios da vida”. Por sutilezas profundas como essas, o texto de Mia Couto não corre; dança. E tem história nele. Não se trata apenas de um encontro perfeito de palavras. Há boas histórias contatadas pelas belas palavras. Para quem gosta de literatura -- não só – mas também pela forma, vale muito a leitura. Afinal, é sempre mais prazeroso ler uma boa história contada de uma forma elegante e supreendente. E isso Mia Couto sabe fazer.(Daniela Diniz)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A vida não é um livro aberto


Antes de começar propriamente este texto, é bom dizer logo: não sou contra redes sociais. Estou cadastrada em quase todas, aliás. Do démodé orkut ao moderninho, agora popular facebook, passando por plaxo, pulse e linkedin. Não alimento todos eles, é verdade. Tenho mais, muito mais o que fazer, mas curto a dinâmica da troca de informações, do resgate de amizades antigas, do aumento do network – que ajuda profissionalmente. Mas as redes não estão limitadas a isso. Ao contrário. Não há limite na web – e é exatamente isso que vem me incomodando ultimamente. No meu tempo de criança, lá pelos meados da década de 80, diário tinha cadeado. E era bom e saudável ter segredos. Hoje, a vida – em suas máximas privacidades – anda escancarada nas redes sociais. Leio diariamente as vontades das pessoas, se estão com sono, com sede, com fome. Sentimentos privados se tornam públicos: “estou com raiva de certa pessoa”, por exemplo. Ou “suspirando por alguém”. Confesso que eu mesma estava quase embarcando na onda de compartilhar emoções desnecessárias. Sim, porque as minhas emoções, os meus sentimentos e minhas vontades dizem respeito a quem mesmo? Definitivamente, não diz respeito ao colega do amigo de trabalho que também caiu na minha rede social. Quando me vi escrevendo algo do gênero: “vontade de tomar mais um café”, a luz amarela acendeu. Não, não saí das redes. Ainda escrevo como estou, onde estou e informações ou textos que, ao meu julgamento, possam ser úteis ou agradáveis a alguém – até mesmo desabafos contra péssimos atendimentos, por exemplo (isso pode dar resultado nas redes!). Mas, ando filtrando minhas palavras e selecionando meus contatos. A vida, ao menos para mim, não é ainda uma tela aberta. (Daniela Diniz)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Resgate

Há algum tempo deixei esse blog para trás pelo maior motivo que pode existir na vida de um ser humano: ter um filho. E ter um filho nos dá desculpa para muitas coisas, inclusive para se ausentar do próprio prazer. No meu caso, da literatura. O ano passado foi o ano em que menos li. Talvez quatro ou cinco livros apenas. Mas foi o ano em que mais aprendi. E toda essa experiência adquirida me livrou de alguns preconceitos. Um deles foi o de usar clichês. Pois a maternidade permite todos eles. Ser mãe é estado único -- de graça, de glória, de benção, mas também exige um abandono de parte de si. Deixamos de fazer uma porção de coisas grandiosas para nos prender em coisas pequenas. O que não significa que nos apequenamos. Apenas mudamos o foco e o peso de algumas ações. Mas tudo, aos poucos, volta. Vamos resgatando parte de quem fomos e unindo às novas partes que agora nos pertence. Eu acreditava que esse tipo de texto não mais sairia de mim. Não há tempo para escrita vulgar. Prefiro ler algo de qualidade a escrever bobagens cotidianas e sentimentais. Mas esse exercício ainda me é importante. Pelos textos do passado, consigo entender melhor quem sou hoje e a razão de algumas atitudes. Uma espécie de terapia literária, como a Leda já escreveu aqui. E talvez por esse motivo, eu precise disso. Para me convencer no futuro de que os dias se parecem, mas não se repetem. De que os anos acumulam rugas e quilos, mas também experiência e sabedoria. De que personalidade é a base do ser humano, mas flexibilidade é a sua sobrevivência. E é dessa forma que volto, que recomeço, que me resgato. Hoje meu filho completa seis meses de vida, eu completo dez anos como jornalista da Editora Abril e páginas em branco me esperam para serem preenchidas – na profissão e na vida. (Daniela Diniz)