sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sobre o Kafka digital

O livro digital caiu no gosto da crítica. A mais nova li hoje de manhã no jornal O Estado de S. Paulo. A coluna de Milton Hatoum -- Livro – Um objeto Anacrônico questiona, assim como já fizemos em posts anteriores, o futuro das boas e velha páginas em papel. Interessante o olhar positivo que ele joga sobre o assunto: o texto na tela seria, para ele, apenas uma alternativa ao livro. O leitor compulsivo que viaja constantemente pode perfeitamente (e de uma forma compreensiva) abrir mão de carregar os pesados títulos que arrancam olhares de curiosidade dos passageiros ao redor. Afinal, isso cansa e pesa. O leitor que se delicia na busca por novos e próximos títulos em sua estante, porém, não abriria mão desse prazer por nada (esse é meu caso e parece ser o dele também). Em sua visão otimista, há espaço para os dois leitores: o do papel e o da tela. Diferentemente de alguns escritores (e até do que já dissemos aqui), Hatoum não se opõe ao livro digital – “afinal qualquer texto de Kafka, na tela ou no papel, será um texto de Kafka”. Refleti e concordei. Não importa como meu futuro filho irá ler Kafka – importa sim, que ele leia. E essa é uma pergunta mais profunda que, como Hatoum bem colocou, ainda não temos resposta. (Daniela Diniz)

O texto na íntegra de Milton Hatoum está em http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100430/not_imp544881,0.php

Clarice mais uma vez


Segue abaixo mais um texto de Clarice Lispector que reencontrei nas andanças pelas agendas velhas. Só não o coloquei no post anterior porque é muito grande. Mas aí está. (Leda Balbino)

“ – Escute-me, amigo, a lua está alta no céu. Você não tem medo? O desamparo que vem da natureza. Esse luar, pense bem, esse luar mais branco que o rosto de um morto, tão distante e silencioso, esse luar assistiu aos gritos dos primeiros monstros sobre a terra, velou sobre as águas apaziguadas dos dilúvios e das enchentes, iluminou séculos de noites e apagou-se em seculares madrugadas... Pense, meu amigo, esse luar será o mesmo espectro tranquilo quando não existirem mais as marcas dos netos dos seus bisnetos. Humilhe-se diante dele. Você apareceu um instante e ele é sempre. Não sofre, amigo? Eu... eu por mim não suporto. Doi-me aqui, no centro do coração, ter que morrer um dia e, milhares de séculos depois, indiferenciado em húmus, sem olhos para o resto da eternidade, eu, EU, sem olhos para o resto da eternidade... e a lua indiferente e triunfante, mãos pálidas estendidas sobre novos homens, novas coisas, outros seres. E eu Morto! – respirei profundamente – Pense, amigo. Agora mesmo ela está sobre o cemitério também. O cemitério, lá onde dormem todos os que foram e nunca mais serão. Lá, onde o menor sussurro arrepia um vivo de terror e onde a tranquilidade das estrelas amordaça nossos gritos e estarrece nossos olhos. Lá, onde não se têm lágrimas nem pensamentos que exprimam a profunda miséria de acabar” (conto “Mais dois três bêbados” do livro “A Bela e a Fera”)


segunda-feira, 26 de abril de 2010

A leitura como terapia

“Todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo.” A frase de Marcel Proust resume perfeitamente a busca velada no ato de abrir um livro. Procuramos a nós. Buscamos o nosso íntimo, aquilo que somos, do que somos feitos. Qual matéria nos define. Redescubro reiteradamente essa verdade quando revisito agendas velhas, de um tempo quando havia tempo para minuciosa e cuidadosamente registrar frases, orações e trechos que falaram à minha alma. São tantos. E em alguns não me leio de todo: apenas prevejo algo que nem sei bem de mim. A mais recente incursão aconteceu na noite de sábado, depois de descobrir que neste mês Clarice Lispector completaria 90 anos se estivesse viva (http://migre.me/zoVx). Revirei páginas e páginas à procura das palavras que em mim se disseram. E essa busca nunca é vã. (Leda Balbino)


“Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: ‘você fica com o livro por quanto tempo quiser’. Entendem? Valia mais do que me dar o livro: ‘pelo tempo que eu quisesse’ é tudo que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer” (Clarice Lispector/ conto: Felicidade Clandestina - livro homônimo)

“Amizade é matéria de salvação” (conto: Uma Amizade Sincera – livro: “Felicidade Clandestina”)

“A prece profunda não é aquela que pede, a prece mais profunda é a que não pede mais” (conto: Os Desastres de Sofia – livro: Felicidade Clandestina)

“Tudo se entrelaçou, confundiu-se dentro de mim e eu não saberia precisar se meu desassossego era o desejo de Daniel ou a ânsia de procurar o novo mundo descoberto. Porque despertei simultaneamente mulher e humana” (conto: “Obsessão” – livro: “A Bela e a Fera”)

“’Una Furtiva Lacrima’ fora a única coisa belíssima em sua vida. Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira. Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era. Quando ouviu começara a chorar. Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos. Chorava, assoava o nariz sem saber mais por que chorava. Não chorava por causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela era ‘assim’. Mas também creio que chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até um certo luxo de alma” (livro: A Hora da Estrela)

“Enquanto isso as nuvens são brancas e o céu é todo azul. Para que tanto Deus. Por que não um pouco para os homens” (livro: A Hora da Estrela)

“Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui” (livro: A Hora da Estrela)

segunda-feira, 12 de abril de 2010

A escrita como terapia

Dizem que escrever é terapêutico. Li que até há cursos em que a escrita é o recurso para o autoconhecimento. Acho que esse é um dos motivos para eu escrever. Muitas vezes o faço para desabafar, para tentar verbalizar o que é intangível, inalcançável e, paradoxalmente, indescritível. Muitas vezes o faço para tentar exprimir em palavras o que nem sei bem de mim. Seguem abaixo dois textos que escrevi no ano passado com uma diferença de dois meses entre si. Eles são o retrato do que vivi e vivo ainda hoje. Eles são meu desabafo. E ao expô-los aqui neste blog me lembro de versos de Carlos Drummond de Andrade: “Não, meu coração não é maior que o mundo/ É muito menor./ Nele não cabem nem as minhas dores./ Por isso gosto tanto de me contar./ Por isso me dispo,/ por isso me grito,/ por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:/ preciso de todos.”

A mão nua

Já se passou uma semana, mas não há como se acostumar com a nudez da mão. O roçar dos dedos sente a ausência daquilo que não está, daquilo que virou hábito com o passar do tempo. E agora só parece haver a mão rendida ao vazio, a falta de um vínculo circular, sem começo nem fim, com o outro. A mão nua representa uma quase morte, não de uma pessoa em si, mas de um sentimento, uma promessa, uma intenção. Parece também quase sepultar uma história, construída apesar dos tropeços, das dificuldades, dos desafios – ou, na verdade, exatamente pela mescla destes com as alegrias, realizações, conquistas. A mão nua anda agora sozinha.Não há mais o entrelaçar de dedos. Não há mais os afagos sem permissão.Tudo nela é contido. O gesto para alcançar. O aceno do adeus. A vontade de tocar. A outra mão às vezes vem em seu auxílio, repousa sobre ela para encobrir a nudez, evitar revelar sua vergonha. Que fracasso é esse tão absurdo que causou a perda de algo antes tão familiar? Há ainda como revertê-la? Há alguma chance de recuperar a aliança perdida?

A mão nua 2

A mão continua nua. Mas ela já se acostumou com a ausência. Quem teima em não aceitá-la é o coração, que ainda há pouco acreditava no retorno. Mas a boca que ainda desejo repetidas vezes já me disse não. Então já é mais do que tempo de me convencer que o abraço que às vezes ainda me enlaça é um engano. Que o olhar carinhoso apenas mente. Que a mão em minha direção já não me pertence. Preciso vivenciar esse luto com a verdadeira ausência. Essa presença que mantém uma rotina antiga só prolonga a esperança de que tudo voltará a ser como era. Mas não será. Tudo mudou, e já faz tempo. É tempo de reconhecê-lo. De recolher os pedaços, erguer-se e seguir um novo caminho. Quanto mais espero mais é longa a saudade, a esperança vã. A mão já não sente a ausência. Há de se dar tempo ao coração. (Leda Balbino)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O vocabulário da nova geração

Semana passada, fui jantar com a Leda no nosso restaurante preferido: a Mercearia do Francês, ali em Higienópolis. Depois de colocar a conversa em dia, passamos ao momento literário da noite. Coisas do tipo: o que você está lendo, o que tem escrito, percepções e descobertas da literatura. Foi então que nos deparamos com uma realidade comum: o nosso vocabulário está hoje para a nova geração quase como o vocabulário de Machado de Assis estava para nós quando lemos Dom Casmurro pela primeira vez. Sim, os jovens de hoje – entre 18 e 25 anos, integrantes da chamada Geração Y, têm um jeito próprio de se comunicar: abreviações, gírias e neologismos fazem parte do seu vocabulário. Parecem desconhecer sinônimos belos das palavras mais simples. Ao ouvir algumas palavras como “balbúrdia” , “inexiste” , “irascível” (pronunciadas por nossa amiga Leda Balbino), ou uma simples “pujança”, os olhares saltam. Nunca nenhum deles ouviu tais palavrões (com o perdão do trocadilho). Ou então, ouviu, mas nunca usou. Para nós, soa uma pouco limitado. Para eles, soamos antiquadas. Afinal, o vocabulário é vivo e se renova com o tempo. O interessante, nesse encontro de gerações, é aprender com os novatos . Seria interessante também se eles gostassem de aprender conosco (hum, conosco também parece coisa do passado!) Desconhecer algumas palavras só não é tão cruel quanto derrapar no uso delas. E aí não é apenas um problema de geração, mas um problema de formação. Os exemplos mais básicos encontramos ao nosso lado, entre os próprios jornalistas . Quer alguns? "Namorar com fulano (no lugar de namorar fulano); "Há cinco anos atrás" (quando o há dispensa qualquer tempo), " Quer que pego para você? (ai, essa dói..mas ouvimos tanto); Isso fica entre eu e ela (no lugar de mim e ela). E nosso jantar acabou em risadas, lembrando das novas palavras dos jovens, dos erros mais comuns de nosso português e dos mestres Guimarães e Pessoa, que ousavam em seus vocabulários – mas (e só porque) os dominavam como ninguém. (Daniela Diniz)