quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Um lugar de destaque para O Último Leitor

Lucio, protagonista de O Último Leitor, romance do mexicano David Toscana, é um leitor voraz e um crítico ácido dos livros que passam por sua biblioteca na pobre e seca Icamole. Se o livro passa pelo seu crivo, a ele é reservado um lugar nas estantes. Se a leitura o desagrada, vai direto para o inferno, como ele chama um depósito subterrâneo cheio de baratas. Ao inferno são condenados os intelectuais que se gabam de sua literatura de gabinete, sem conhecer a vida real. Também censura os escritores que se apegam a descrições desnecessárias, comparativos esdrúxulos ou histórias batidas, como professores de literatura cinqüentões que se envolvem com suas alunas de vinte. Despreza os gringos, os espanhóis e prefere os escritores a escritoras. Lucio tem muita razão no que diz, o que faz de O Último Leitor um livro interessantíssimo sobre a crítica da própria literatura, a condução da leitura pelo seu principal alvo, o leitor, e a análise de escritores mais preocupados com prêmios e formas do que com histórias de vida. Lucio é pobre também, habitante de uma cidade em que as pessoas estão mais preocupadas com água do que com livros, e não fala francês, mas é dono de uma sabedoria suficiente para prender o leitor até a última página de seu, podemos dizer assim, livro. (Daniela Diniz)

Abaixo, algumas críticas extraídas da análise de Lucio, por David Toscana:

“A palavra horror é uma ilusão do escritor, pretende criar uma tensão inexistente, porque é óbvio que o negro não vai morrer, tudo é tão óbvio: os brancos falam de uma rameira e o negro menciona Deus, os brancos bebem Bourbon e o suor do negro nem fede. Lucio retorna a sua escrivaninha e abre o livro na última página para confirmar a lição de moral que já estava esperando.”

“Tomou cuidado para que fosse um romance recente pois estes não se preocupam mais em descrever os detalhes de um prato, a menos que sejam de escritoras ou, pelo menos, de algum latino-americano que no começo acreditou que a literatura corrigia males sociais e como passar dos anos preferiu entreter senhoras de sapatos de verniz que lhe pediam autógrafos entre lisonjas e bajulação e amor pelo que é estrangeiro, porque um dia fui povo, minhas senhoras, mas agora sou afrancesado ou germanista ou bulgarista.”

“O narrador se sentava à mesa e dizia: Sara escolheu uma esplêndida garrafa de Château Certan-Marzelle 98 para acompanhar a salada périgourdine, a coccotte de porc à l’ananas e o brie de Coulommiers, e como sobremesa mandou que fossem servidos crepes aux moules preparados com um magnífico vin de paille. Essas linhas e a descrição que seguia sobre mais quitutes e garrafas e vocábulos em itálico não provocaram a menor reação em seu estômago. Para mim, com esses nomes estrangeiros, dá na mesma se estão de comida ou de peças de reposição para uma máquina....censurou o romance na página 39”

“Tempos atrás Lucio fez uma experiência: enquanto lia Olhos insones, usou um pincel para passar mel nos parênteses e travessões que tanto usam certos autores com o propósito de subordinar ou intrincar as frases. Para Lucio, esses símbolos são concessões que a gramática faz aos escritores canhestros, aqueles que não atinam com o modo de encadear as frases de maneira natural, lisa.”

“Você sabia que de cada 28 páginas só uma é lida? Porque existem livros que são dados para gente que não lê, porque caem numa biblioteca sem usuários, porque são adquiridos para fazer volume numa estante, porque são dados na compra de outro produto, porque o leitor perde o interesse desde o primeiro capítulo, porque nunca saem do depósito do impressor, porque os livros também são comprados por impulso.”

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Herança

Encontro velhos escritos em uma agenda velha. Escritos meus, escritos de outros, palavras que moldaram minha alma daquele tempo e deixaram ressonâncias na de hoje. Lendo-as agora, com olhos já não de antes, percebo o quanto determinaram meus passos e sonhos, minhas pretensões. Minha alma é, de certa forma, a dos escritores que tanto falaram a ela, tanto a inspiraram, encravando em minha mente sua forma particular de ver o mundo e de atuar nele. Sou todas essas palavras que li e imensamente amei, ao ponto de reproduzi-las letra a letra, sílaba a sílaba, ao lado de palavras minhas em agendas em que relatava meus dias. As incorporei aos meus gestos, à minha maneira de agir no mundo e com o próximo. As tomei ao pé da letra na forma como tentei construir minha carreira e na forma como tantas vezes ainda projeto sonhos de antes para o futuro. Esses escritores que tanto me inspiraram e inspiram são uma herança sagrada para aquela que ainda serei. (Leda Balbino)

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O idioma de Mia Couto


Mia Couto tece palavras. E elas são tantas, e eu tão pouca, que preciso reler trechos, voltar a parágrafos inteiros, para me inteirar de seus sentidos vários. É poesia em prosa, como poucos conseguem escrever. É prosa poética, como talvez só algumas línguas possam permitir. São palavras que merecem a demorada contemplação. "Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo", disse Fernando Pessoa sobre sua escrita, mas bem se referia também a escritores como Mia, que com seu português moçambicano cria um idioma próprio, inspirado na tradição de Guimarães Rosa de inventar neologismos e deixar impressa a língua falada do povo. Testemunhei isso no primeiro livro que dele li, Terra Sonâmbula. E volto a confirmá-lo agora, com os 29 contos de O Fio das Missangas. São de uma beleza singular as curtas histórias que narra, algumas trágicas, outras cômicas. São sensíveis retratos da gente marginalizada e esquecida de Moçambique, mas com a angústia e alegria universais de todos os povos da Terra. O idioma Mia Couto faz bem para a alma. (Leda Balbino)


"Envelhecer é ser tomado pelo tempo, um modo de ser dono do corpo. E eu nunca amei o suficiente. Como a pedra, que não tem espera nem é esperada, fiquei sem idade" (conto: O cesto)


"Regressava a horas, entrava em casa pelas traseiras para não chorar ante os olhos sofridos de minha mãe. Minha fatia de tristeza era uma ofensa perante as verdadeiras e inteiras mágoas dela" (conto: Meia culpa, meia própria culpa)


"Quando ele me dirigiu palavra, nesse primeiríssimo dia, dei conta de que, até então, nunca eu tinha falado com ninguém. O que havia feito era comerciar palavra, em negoceio de sentimento. (...) Lembro desse encontro, dessa primogénita primeira vez. Como se aquele momento fosse, afinal, toda minha vida. Aconteceu aqui, nesse mesmo pátio em que agora o espero. Era uma tarde boa para a gente existir. O mundo cheirava a casa. (...) Vez e voz, os olhos e os olhares. Ele, em minha frente, todo chegado como se a sua única viagem tivesse sido para a minha vida" (conto: A despedideira)


"Meu peito era um rio lavado, escoado no estuário do choro" (conto: A despedideira)


"Não sou velho, é verdade. Mas fui ganhando muitas velhices" (conto: O fio e as missangas)


"Meu coração sapateia, desentendido. Pudesse haver silêncio feito de gente estar calada. Mas esse silêncio não há" (conto: O fio e as missangas)


"Desculpe-me, Cristo: esplendoroso é o que sucede, não o que se espera" (conto: Os olhos dos mortos)


"Venâncio estava na violência como quem não sai de seu idioma. Eu estava no pranto como quem sustenta a sua própria raiz. Chorando sem direito a soluço; rindo sem acesso a gargalhada. O cão se habitua a comer sobras. Como eu me habituei a restos de vida" (conto: Os olhos dos mortos)


"A lágrima lava a sofrência" (conto: Os olhos dos mortos)


"Lição que aprendi: a Vida é tão cheia de luz, que olhar é demasiado e ver é pouco. É por isso que fecham os olhos aos mortos" (conto: Os olhos dos mortos)


"O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida para me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penalties eu já tinha marcado contra o destino?" (conto: O mendigo Sexta-Feira jogando no Mundial)


"O pranto é o consumar de duas viagens: da lágrima para a luz e do homem para uma maior humanidade. Afinal, a pessoa não vem à luz logo em pranto? O choro não é a nossa primeira voz?" (conto: Os machos lacrimosos)


"Criancice é como o amor, não se desempenha sozinha. Faltava aos pais serem filhos, juntarem-se miúdos com o miúdo. Faltava aceitarem despir a idade, desobedecer ao tempo, esquivar-se do corpo e do juízo. Esse é o milagre que um filho oferece - nascermos em outras vidas" (conto: O rio das Quatro Luzes)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Os sons e os cheiros de Portugal


Passei uma semana em Portugal. Revisitei Lisboa, Sintra, Coimbra e Porto. Conheci Cascais e Guimarães. Emocionei-me com o Tejo novamente. Portugal me encanta. Pela história – linda, nossa, tão intensa. Pelas suas ruas azulejadas, pelos varais de roupa, pelo cheiro de doces nas calçadas. Encanta-me, sobretudo, seu português sem ruídos. O som do português. A ausência do feio gerúndio em suas frases. Ninguém lá está fazendo nada. Todos estão a fazer alguma coisa. Lá não existe “a gente” mas “nós”. E conjugam pessoas e verbos de forma correta. Gosto do som de Portugal. De sentir nas ruas de Lisboa um pouco de Pessoa. De olhar o Tejo e lembrar de Camões, dos navegadores, dos descobrimentos, de tantos que lá ficaram e provocaram versos imortais. Do triste amor de Inês. Da pujança real e seus palácios formidáveis. Dos castelos, da história medieval que permanece intacta no mundo contemporâneo. Volto num tempo que não vivi. E por isso voltarei mais vezes àquela terra. Sentirei mais os cheiros de doces e sardinhas nas brasas do Porto. Ouvirei o chorado fado. Lerei sempre Pessoa, Camões e também Saramago, na constante busca do português perfeito. (Daniela Diniz)

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Exemplo de Vida

Meu pai é um homem de projetos. O mais recente deles é a autobiografia que lançou há uma semana, dia 15 de setembro, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Na obra Leonídio Balbino, Operário do Livro, ele narra sua infância em Arapiraca, Alagoas, e sua trajetória a partir dos 17 anos de idade em São Paulo, onde, apesar de analfabeto até os 20 anos, tornou-se vendedor de livros e, mais tarde, editor. É dessas ironias que a vida de meu pai se preenche. E de uma sabedoria inata, cheia de conselhos de força, garra e manha, cheia da certeza de que tudo é possível: afinal, ele veio para a Selva de Pedra, aprendeu a ler e a escrever sozinho, construiu uma empresa, editou mais de 2.000 títulos e criou uma família de seis filhos – todos com educação superior. Ele viajou o mundo sem falar uma palavra de inglês, vendeu livros em Portugal e demais países falantes do português, conheceu autoridades e personalidades importantes de seu tempo. Como, realmente aos seus olhos, não acreditar que tudo é possível? Que sempre há e haverá lugar para o self-made man, aquele que se ergue sozinho, que se constrói e reconstrói diariamente? Meu pai é um homem de esperanças. Em si, nos outros. Tantas vezes queria ser como ele. Tantas vezes queria ter essa coragem e essa intenção de fazer dar certo, de esquecer as frustrações e o medo e apenas tentar novamente, mais uma vez, infinitas vezes, de cabeça erguida perante a dúvida. Queria ser notável como meu pai. Queria ser um exemplo de vida também possível de se traduzir em livro. (Leda Balbino)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Mais Estranho que a Ficção

Muitos filmes são adaptações de livros, mas também há aqueles que, embora não sejam necessariamente frutos de uma obra literária, foram criados tendo como um de seus motes a literatura. Um exemplo clássico da minha adolescência é Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society, 1989), com seu “Oh Captain My Captain”. E um exemplo recente é o também americano Mais Estranho que a Ficção (Stranger than Fiction, 2006). Fui assisti-lo sozinha no ano passado, atraída pelo roteiro original e criativo: o agente do fisco americano Harold Crick (Will Ferrell) vive uma vida monotamente solitária – mensurada pela quantidade de escovadas matinais nos dentes e pelos passos dados até ônibus –, até começar a ouvir uma voz feminina narrando sua vida. A voz, que só ele consegue ouvir, é da escritora Kay Eiffel (Emma Thompson), que tenta terminar seu último livro sem saber que seu protagonista pode escutá-la. Por isso, não lhe é possível evitar que o mundo do personagem vire de ponta-cabeça quando ele a ouve decretar que sua morte é iminente. Depois de receber essa informação, Harold inicia uma corrida contra o tempo para tentar descobrir, com a ajuda do professor de literatura Hilbert (Dustin Hoffman), o que pode fazer para evitar que sua história se confirme como tragédia. Vendido no trailer como uma comédia, Mais Estranho que a Ficção é na verdade uma belíssima discussão sobre a literatura, o processo criativo, a construção da narrativa, o papel do escritor e do leitor. E, acima de tudo, sobre a possibilidade de redenção pela arte da escrita. Emocionei-me da primeira vez que o vi. E, pensando que a culpa era da TPM, tirei a prova da segunda vez, em DVD. Da terceira vez, assistindo pela Sony, só voltei a confirmar que Mais Estranho que a Ficção é um daqueles filmes despretensiosos que acabam compondo o ranking de preferidos (e tudo deve ser culpa do roteirista, Zach Helm). Mais informações em: http://www.sonypictures.com/homevideo/strangerthanfiction. (Leda Balbino)

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Sobre o coração

"O coração, se pudesse pensar, pararia". Assim escreveu aquele que, na minha opinião, melhor define os sentimentos -- Fernando Pessoa. Se meu coração pudesse pensar, no entanto, ele muitas vezes sofreria mesmo -- ou me faria sofrer menos. Porque, muitas vezes, a cabeça entende, mas o coração não aceita. A cabeça faz contas. O coração lê histórias. A cabeça planeja. O coração segue. A cabeça prova. O coração desmente. Se o coração seguisse apenas a lógica da razão, sem a confusão provocada pelos sentimentos, seria mais limpo, mais objetivo, talvez, mais vazio. Não seria, portanto, coração. Estaria morto, parado, como escreveu Pessoa. É melhor, então, viver em conflito do que perder a parte que nos faz viver. (Daniela Diniz)