terça-feira, 29 de março de 2011

A Ficção da Ficção


Domingo fui assistir ao filme O Retrato de Dorian Gray, dirigido por Oliver Parker, com Colin Firth no papel de Lorde Wotton e Ben Barnes, como Dorian. Melhor do que ouvir as frases de Oscar Wilde na boca do ótimo Colin Firth, só lendo o próprio Oscar Wilde. Mas a nova versão de O Retrato não deixa muito a desejar aos amantes de Wilde, diferentemente do que li em outras críticas. Há ajustes, adaptações e até invenções (o Lorde Wotton, de Wilde, não era casado, por exemplo) mas nada que prejudique o tema central – o culto ao belo e ao prazer e a vida sem limites. Quando li O Retrato imaginei cenas exatamente como as que vi no filme: uma Londres vitoriana, escura e hipócrita; um Dorian ingênuo, superficial e um Wotton inteligente, sarcástico e manipulador. E isso me fez refletir sobre a diferença entre a literatura que lemos e a literatura que assistimos. Pois eu temi encontrar uma outra história quando li algumas críticas do gênero: “bom, mas muito diferente da obra original”. Para o crítico, se tratavam de duas literaturas: a de Wilde e a de Oliver Parker. Para mim, é única. E como isso é belo. Ao ler uma obra, você se desloca para um lugar e tempo em que sua imaginação constrói. E isso muda – de imaginação para imaginação. Muda de acordo com a pessoa, com a sensibilidade, com a criatividade de cada um. A minha percepção, no caso, esteve bem próxima a do diretor. E por isso mesmo, eu, que listo O Retrato de Dorian Gray entre minhas obras preferidas, recomendo o filme. Vale ouvir – ainda que diluídas – as brilhantes palavras de Oscar Wilde. (Daniela Diniz)

terça-feira, 22 de março de 2011

Descobrindo Benedetti

Faltam poucas páginas para eu terminar A Trégua, romance, meio novela, do uruguaio Mario Benedetti. Gosto da literatura latina -- da argentina, especialmente. Gosto também de Gabriel García Marques, Pablo Neruda, Octavio Paz. Mas do Uruguai eu só conhecia Eduardo Galeano. Fui apresentada à sua obra pelas mãos da Leda, que me deu nos meus já longíquos 20 anos, uma edição de O Livro dos Abraços. Fiquei apaixonada. Li depois um pouco de uma de suas obras mais famosas, As Veias Abertas da América Latina. Mas parei por aí. Voltei à literatura uruguaia agora pela obra de seu mais famoso ou querido escritor, Mario Benedetti, que faleceu em maio de 2009. E estou adorando. De leitura fácil, o livro descreve o diário de um viúvo pré-aposentado, prestes a fazer cinquenta anos. Relata suas angústias da vida pacata, monótona, vivida numa Montevidéu de 1960. Os dias simplesmente passeiam ao seu redor até que encontra uma moça, com metade de sua idade, por quem se apaixona. E sua rotina muda. E suas angústias também. Não teme mais somente a vida pós aposentadoria, a novidade do ócio, mas a vida sem sua nova companheira, a vida vista pelos olhos preconceituosos de seus filhos, dos poucos amigos. O livro fala de dramas comuns de hoje, vividos talvez, com intensidade diferente. O homem de 50 anos hoje pode temer a compreensão dos filhos ao apresentar uma moça de 25 como sua namorada (apesar de isso ser cada vez mais comum), pode temer a aposentadoria (embora aos 50 hoje, ele vai apenas começar a pensar nisso) e também pode sofrer calado ao descobrir que seu filho preferido é homossexual. A obra tem mais de 40 anos mas os simples dilemas da vida a tornam sempre atual. (Daniela Diniz)

terça-feira, 15 de março de 2011

Os livros da minha década

No ano passado, completei dez anos de anotações sobre os livros que leio. Embora o hábito da leitura tenha sido adquirido quando eu ainda era criança (lá pelos oito anos), somente em 2000 comecei a avaliar de forma mais crítica os livros que passaram pelos meus olhos e classificá-los de acordo com meu entusiasmo com a leitura. A forma de classificação é bem simples: vai de uma a cinco estrelas. Os mais estrelados recebem alguns comentários ao lado, sobre forma, conteúdo ou passagens que considerei fantásticas. Divulgo hoje a lista dos meus livros cinco estrelas, dos livros que marcaram a minha década*. (Daniela Diniz)

Cem Anos de Solidão (Gabriel García Marquez)

Ensaio sobre a Cegueira (José Saramago)

Ficções do Interlúdio (Fernando Pessoa)

Madame Bovary (Gustave Flaubert)

Memórias do Subsolo (Fiódor Dostoievsky)

Desonra (J. M. Coetzee)

Sagarana (João Guimarães Rosa)

A Hora da Estrela (Clarice Lispector)

Todos os Fogos o Fogo (Julio Cortázar)

Elogio da Sombra (Jorge Luís Borges)

Quando Fui Outro (Fernando Pessoa)

A Legião Estrangeira (Clarice Lispector)

Extremamente Alto & Incrivelmente Perto (Jonathan Safran Foer)

A Morte de Ivan Ilitch (Liev Tolstói)

O fio das Missangas (Mia Couto)

O Retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde)

*A lista não está classificada por ordem de preferência, mas por ordem cronológica de leitura

quarta-feira, 9 de março de 2011

O Idioma Pessoa

Eu e Dani temos uma tradição. Nos nossos respectivos aniversários sempre nos damos de presente um livro. De narrativas que adoramos. De autores que amamos ou esperamos amar. De textos que queremos descobrir. Esse foi o caso de “O Livro do Desassossego”, de Pessoa, que ela menciona no belo post abaixo. Ele foi o presente que ganhei dela em 2002 e, no ano seguinte, tornou-se um volume cheio de trechos sublinhados a lápis, de descobrimentos que me espantaram. Pessoa é o que é não necessariamente por tocar na inevitável sensibilidade da alma, mas pela força com que escreve, descreve, narra-se, dono completo de palavras que lhe servem como um idioma próprio. É no “Livro do Desassossego” que Pessoa revela: “Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.” (Leda Balbino)

“Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava – parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito”

“Na palavra falada temos que ser, em absoluto do nosso tempo e lugar. (...) A palavra escrita, ao contrário, não é para quem a ouve, busca a quem a ouça, escolhe quem a entenda, e não se subordina a quem a escolhe”

“(...) não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que, por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me deles era metade e semelhança da morte”

“De repente estou só no mundo. Vejo tudo isto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro”

“Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência”

“Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir – é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida. (...) Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem da luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser”

“(...) amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na paisagem”

“(...) se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. (...) Condillac começa o seu livro célebre, ‘Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos de nossas sensações’. Nunca desembarcamos de nós”

“Há em certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e coisas. E, tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que sou hoje. (...) Como avancei para o que era? Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? (…) Quanto sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?”

sexta-feira, 4 de março de 2011

Livro de Cabeceira

Sempre que lia ou ouvia essa expressão ‘livro de cabeceira’, não entendia muito bem. Especialmente naqueles ping pongs que revistas de celebridades fazem com famosos nos quais o entrevistador pergunta todas as coisas tolas, como qual seu filme preferido? sua música favorita? e comida? um lugar inesquecível? Pronto! Está lá também a pergunta: qual seu livro de cabeceira? Livro de cabeceira afinal é aquele que não sai do seu criado-mudo (e, portanto você nunca termina) ou aquele que você está lendo no momento? Era a pergunta que eu sempre me fazia. Sim, porque muitos livros entram e saem da minha..vamos lá, cabeceira. Até que comecei a ler O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa – ou Bernardo Soares, seu heterônimo. Na edição de bolso que tenho, da Cia das Letras, o livro – ou “O Livro” tem 524 páginas (sem contar as NOTAS FINAIS). O volume conta com 481 trechos, parágrafos ou pequenos textos (como queira definir) de prosa poética perfeita. Definições, delírios, alucinações, medos e preocupações – todos os sentimentos pensantes ou pensamentos sentimentais de Pessoa ou Soares estão ali. Não é um livro de contos, de poemas ou romance. Está mais para um diário sem tempo. E esse formato – e sua profundidade – permitem transformá-lo num perfeito livro de cabeceira. Daqueles que você abre antes de dormir, lê um dos trechos sem compromisso, sem remorso de ficar uma semana ou um mês sem pegá-lo novamente, pois o próximo trecho pode não ter nada a ver com o que você leu antes. E por isso mesmo, você pode dividir a leitura com outro livro. Sim, porque eu sou o tipo de leitora que gosta de ler um volume de cada vez. Nesse caso, não. O Livro do Desassossego virou meu livro de cabeceira. Está lá para alimentar algumas noites de insônia. O único risco que corro – e que já me aconteceu – é de passar um tempo desassossegada com alguns trechos como os que cito abaixo e, em vez de encontrar o sono, perdê-lo de vez. (Daniela Diniz)

“Eu de dia sou nulo e de noite sou eu”

“Vivo mais porque vivo maior”

“Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir”

“Quero ser eu sem condições”

“O único modo de estarmos acordados com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios”

terça-feira, 1 de março de 2011

Por que ler Mia Couto

Terminei de ler há alguns dias Terra Sonâmbula, romance do moçambicano Mia Couto. E entendi porque Mia, assim como Pessoa, Saramago, Guimarães Rosa, Borges e Cortázar entrou para a lista dos escritores que merecem mais de dois livros na minha estante. Mia, escrevi para um amigo querido e distante, não escreve; ele tece palavras. Domínio de poucos. Descreve com simplicidade o mais complexo dos sentimentos e de forma profunda relata as coisas simples da vida. Um exemplo que ficou na memória: Tuhair, o velho personagem de Terra Sonâmbula, não ensina simplesmente Muidinga, o personagem menino, a andar, falar, comer. Ele lhe ensina, nas palavras de Mia, “todos os inícios da vida”. Por sutilezas profundas como essas, o texto de Mia Couto não corre; dança. E tem história nele. Não se trata apenas de um encontro perfeito de palavras. Há boas histórias contatadas pelas belas palavras. Para quem gosta de literatura -- não só – mas também pela forma, vale muito a leitura. Afinal, é sempre mais prazeroso ler uma boa história contada de uma forma elegante e supreendente. E isso Mia Couto sabe fazer.(Daniela Diniz)