quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O idioma de Mia Couto


Mia Couto tece palavras. E elas são tantas, e eu tão pouca, que preciso reler trechos, voltar a parágrafos inteiros, para me inteirar de seus sentidos vários. É poesia em prosa, como poucos conseguem escrever. É prosa poética, como talvez só algumas línguas possam permitir. São palavras que merecem a demorada contemplação. "Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo", disse Fernando Pessoa sobre sua escrita, mas bem se referia também a escritores como Mia, que com seu português moçambicano cria um idioma próprio, inspirado na tradição de Guimarães Rosa de inventar neologismos e deixar impressa a língua falada do povo. Testemunhei isso no primeiro livro que dele li, Terra Sonâmbula. E volto a confirmá-lo agora, com os 29 contos de O Fio das Missangas. São de uma beleza singular as curtas histórias que narra, algumas trágicas, outras cômicas. São sensíveis retratos da gente marginalizada e esquecida de Moçambique, mas com a angústia e alegria universais de todos os povos da Terra. O idioma Mia Couto faz bem para a alma. (Leda Balbino)


"Envelhecer é ser tomado pelo tempo, um modo de ser dono do corpo. E eu nunca amei o suficiente. Como a pedra, que não tem espera nem é esperada, fiquei sem idade" (conto: O cesto)


"Regressava a horas, entrava em casa pelas traseiras para não chorar ante os olhos sofridos de minha mãe. Minha fatia de tristeza era uma ofensa perante as verdadeiras e inteiras mágoas dela" (conto: Meia culpa, meia própria culpa)


"Quando ele me dirigiu palavra, nesse primeiríssimo dia, dei conta de que, até então, nunca eu tinha falado com ninguém. O que havia feito era comerciar palavra, em negoceio de sentimento. (...) Lembro desse encontro, dessa primogénita primeira vez. Como se aquele momento fosse, afinal, toda minha vida. Aconteceu aqui, nesse mesmo pátio em que agora o espero. Era uma tarde boa para a gente existir. O mundo cheirava a casa. (...) Vez e voz, os olhos e os olhares. Ele, em minha frente, todo chegado como se a sua única viagem tivesse sido para a minha vida" (conto: A despedideira)


"Meu peito era um rio lavado, escoado no estuário do choro" (conto: A despedideira)


"Não sou velho, é verdade. Mas fui ganhando muitas velhices" (conto: O fio e as missangas)


"Meu coração sapateia, desentendido. Pudesse haver silêncio feito de gente estar calada. Mas esse silêncio não há" (conto: O fio e as missangas)


"Desculpe-me, Cristo: esplendoroso é o que sucede, não o que se espera" (conto: Os olhos dos mortos)


"Venâncio estava na violência como quem não sai de seu idioma. Eu estava no pranto como quem sustenta a sua própria raiz. Chorando sem direito a soluço; rindo sem acesso a gargalhada. O cão se habitua a comer sobras. Como eu me habituei a restos de vida" (conto: Os olhos dos mortos)


"A lágrima lava a sofrência" (conto: Os olhos dos mortos)


"Lição que aprendi: a Vida é tão cheia de luz, que olhar é demasiado e ver é pouco. É por isso que fecham os olhos aos mortos" (conto: Os olhos dos mortos)


"O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida para me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penalties eu já tinha marcado contra o destino?" (conto: O mendigo Sexta-Feira jogando no Mundial)


"O pranto é o consumar de duas viagens: da lágrima para a luz e do homem para uma maior humanidade. Afinal, a pessoa não vem à luz logo em pranto? O choro não é a nossa primeira voz?" (conto: Os machos lacrimosos)


"Criancice é como o amor, não se desempenha sozinha. Faltava aos pais serem filhos, juntarem-se miúdos com o miúdo. Faltava aceitarem despir a idade, desobedecer ao tempo, esquivar-se do corpo e do juízo. Esse é o milagre que um filho oferece - nascermos em outras vidas" (conto: O rio das Quatro Luzes)

Um comentário:

  1. parabéns para as duas pelo blog. espaços literários movidos a paixão são sempre bem vindos. fazem a gente respirar, abrir mais os olhos e sentir cada palavra com o coração. beijo!

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