quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O papel do ensino

O comentário de Kárita, no meu post abaixo, me fez questionar o papel dos cursinhos no despertar do interesse pela leitura ou por um autor específico. E, ao me questionar, lembrei-me de uma aula específica de literatura de meu cursinho, há 14 anos. Nessa aula, o professor – de quem esqueço o nome para só me recordar do rosto redondo com armação de óculos idem – tinha a tarefa de nos relatar a história de Memorial do Convento, do português José Saramago. Acontece que o professor não relatou o livro. Ele o narrou, com gestos grandiosos nos momentos que o pediam, com outros comedidos quando exigidos e com o olhar maravilhado daqueles que sabem as palavras. E o que ficou gravado mais nitidamente na memória foi sua narração do final do livro, quando Blimunda finalmente reencontra seu grande amor, Baltasar, após muito caminhar em nove anos de busca. Vítima das fogueiras da Inquisição (ressurgida em Portugal no século 18, sob auspício de D. João V), Baltasar arde entre outros dez condenados. Blimunda o reconhece por sua marca registrada – a ausência da mãe direita – e, como tinha o poder de ver as pessoas por dentro quando em jejum, vê no centro de seu corpo uma nuvem fechada (que Saramago chama de "vontade", mas bem podemos interpretar como sua essência, ou alma). Além de ver as pessoas por dentro, Blimunda tinha outro poder: podia reter na Terra a "vontade" daqueles à beira da morte. Se fizera isso com tantos outros, por que não com seu amor? Então, olhando a nuvem fechada, a convoca: “Vem”. A consequência deixo narrada nas palavras do próprio autor: “Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.” Para narrar essa parte, o professor representou a "vontade" de Baltasar com suas mãos, interrompendo sua ascensão aos céus para devolvê-las ao centro do corpo e depois projetá-las para frente, representando o caminho final em direção a Blimunda. Nunca esqueci de seus gestos e olhares enquanto nos narrava a obra, uma das histórias de amor mais bonitas que já li. E, apesar de já saber o começo, o meio e o fim do livro, tornou-se urgente a experiência de lê-lo com meus próprios olhos. Se havia maravilhado tanto meu professor, por que não a mim? (Leda Balbino)

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