sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Há livros nas estantes.

Há o silêncio na sala vazia.

Há a caneta e o papel,

a luz a iluminar a sombra,

o não a revelar a dor.

Há o suspiro e a vergonha.

Os erros cometidos,

a volta impossível.

Há a morte.

O tempo.

E tudo o que arrasta:

nossa ilusão alegre,

nossas pretensões.

Há o frio e nenhuma espera.

Há a resignação posterior ao choro.

A respiração calma após a catarse.

Por quanto tempo?

Quando virão novas ilusões para acelerar a respiração,

remexer esperanças,

criar expectativas?

Não desta vez.

Agora só há indiferença.

O cansaço.

A preguiça de seguir.

Por que não só dormir?

Por que não deixar para nunca os arrependimentos?

Já foi. Tantos se me foram.

Estou só.

E os livros nas estantes.

À espera do folhear de páginas.

À espera.

Como a vida. (Leda Balbino)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Um retrato de Cuba

Havana é uma cidade linda, mas esgotada. Prédios descascados (como eles dizem por aqui) convivem lado a lado com os símbolos históricos restaurados. Na rua há sempre pequenas poças d´água da chuva do dia anterior se mesclando com cheiro de esgoto. A cidade parece estar cansada. E não é só ela. Os cubanos também estão. Eles se autodenominam bandidos e ladrões, pelo fato de terem de incorrer ao ilícito (como o mercado negro) para conseguir comida, já que os salários módicos não duram até o fim do mês. Eles se incomodam pelo fato de não poder ir e vir, de não ter dinheiro suficiente para viajar pelo próprio país ou para o exterior e, se o têm, por ter de enfrentar uma burocracia sem fim para poder partir. E não é só a burocracia que os atormenta. É o medo de que, ao se irem da Ilha, percam suas casas, seus automóveis, tenham suas contas de banco fechadas. Muitos sonham encontrar um estrangeiro para que possa sair casados e não perder "o direito de ser cubano". Essa é a única maneira de não ser considerado um "traidor".

Ao mesmo tempo, são tão contraditórios. Embora falem muito mal do governo, dizem que não são contra o governo. Ao mesmo tempo em que reclamam do fato de não poder ir e vir e de sentir um medo constante de represálias (só duas pessoas das mais de 10 com quem conversei me autorizaram a publicar seus nomes), dizem que seu único problema é econômico. Que, se a economia estivesse bem, tudo estaria bem. Segundo um dissidente político, é mentira. As pessoas querem sim uma mudança de governo, estão cansadas de ter negado o direito a ter direitos civis. O direito de se autodeterminar. O direito de usar seu potencial, sua criatividade, e prosperar (não apenas economicamente, mas em tudo).

Os cubanos são adoráveis, e extremamente inteligentes, amáveis, muitos deles cultos. Todos sabem se expressar ou, parafraseando Saramago, transformar em palavras um pensamento metafísico. São orgulhosos de ser cubanos, de terem feito a Revolução que tanto fascina o mundo, de terem o "cavallo" Fidel. Mas visivelmente estão cansados do sistema. Nas ruas muitas pessoas caminham tristemente alegres. Não são necessárias perguntas para que comecem a reclamar da vida, da situação do país. Há um desejo implícito de mudança. Há esgotamento, a frustração de sonhos e promessas não cumpridos. Há a falta de perspectivas, uma preguiça, uma sensação de que não vale a pena.

Há escuridão. Como a cidade quase não é iluminada à noite, para identificar um táxi é necessário contar com os faróis. Há o improviso. Carros velhíssimos fazem às vezes de transporte público. Homens pedalam as bicitáxis para transportar cubanos, e podem perder sua licença de trabalho se forem vistos levando turistas. Mas eles se arriscam, porque os estrangeiros pagam mais e, claramente, valem mais do que a população local. Lagostas estão proibidas para os cubanos, que não podem pescá-las sem uma licença. Elas são para exportação ou para os turistas que quase já não mais lotam os hotéis. Para conseguir comprá-las, os cubanos contam com o mercado negro. Para mostrar o quando seria caro em relação ao salário daqui, uma cubana comparou seu preço a de um diamante.

E há o temor. Não apenas de represália por terem seu nome vinculado a uma crítica ao regime, mas do futuro. O que ocorrerá quando mais de 500 mil pessoas forem demitidas, na primeira vez em que o governo tornará oficial o desemprego, antes artificialmente
anunciado em apenas 1%? Muitos temem o aumento da violência. Que pessoas em desespero, por não ter o que comer, comecem a roubar, invadam casas alheias.

Em Havana há um grande medo do futuro. Mas, ao mesmo tempo, a frustrada certeza de que - infelizmente - tudo mudará para continuar o mesmo. (Leda Balbino, de Havana)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

"O mundo ficou mais cego"


Ao longo do tempo que eu e Dani fazemos esse blog, mencionamos Saramago diversas vezes. E não poderia ser diferente hoje, no dia de sua morte. Assim que pus os pés no trabalho, fiquei sabendo que o escritor, o único Nobel de Literatura para um autor em Língua Portuguesa, havia morrido. E enquanto ainda lia as informações sobre o fato, ouvi a piada de que deveríamos publicar em seu obituário uma enquete com a pergunta: "Quantos livros de Saramago você conseguiu terminar?" Talvez a melhor pergunta fosse como se formam tão poucos leitores para apreciar as obras líricas e cheias de nuances de Saramago. "O mundo ficou ainda mais burro e ainda mais cego hoje", disse sobre sua morte o cineasta brasileiro Fernando Meireles, que adaptou para o cinema em 2008 o ácido, mas também redentor, "Ensaio sobre a Cegueira". Segundo Meireles, em um documentário que está sendo produzido sobre Saramago e sua mulher, Pilar, "vemos ali um homem brilhante que sabe que seu tempo está acabando e tem muita pena de morrer". Escritor de sucesso tardio, já que o reconhecimento pelo seu trabalho só chegou depois dos 60 anos, o autor português também teve um amor tardio. Aos 63 anos conheceu Pilar, jornalista espanhola 28 anos mais jovem cujo primeiro contato com Saramago foi pelo livro "Memorial do Convento". Após passar a noite com a obra, voltou a uma livraria em Sevilla para comprar outros títulos do autor e, quando em Lisboa, sentiu curiosidade de procurá-lo para se conhecerem pessoalmente. Casaram-se poucos anos depois e Pilar tornou-se a tradutora de suas obras para o espanhol. Os dois, segundo ela, tinham "uma parceria para a vida". Em 2008, Saramago dedicou seu "A Viagem do Elefante" (2008) à mulher, escrevendo: "A Pilar, que não me deixou morrer." Ele se referia a uma pneumonia que o forçou a ficar internado durante quatro meses em 2007. A proximidade com a morte influenciou o livro de 2008, em que Saramago narra a aventura verídica de um elefante que rumou, em 1531, de Lisboa a Viena, presente de um rei português. Ao morrer, suas patas dianteiras foram cortadas para fazer um porta guarda-chuvas. "Por que essa humilhação?", perguntou-se Saramago em uma entrevista sobre o livro. "O que dá o significado último à vida é o que se passa depois da morte." Saramago deixa saudades. Melhor significado não há. (Leda Balbino)

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Desculpa pelos intervalos literários

Li hoje na Ilustrada da Folha de S. Paulo a entrevista com Ferreira Gullar, que ganhou ontem o Prêmio Camões, o principal da língua portuguesa. Lá, ele fala um pouco dos seus quase oitenta anos, do governo Lula e muito pouco do seu próximo livro de poesias Em Alguma Parte Alguma. O livro -- a ser lançando em setembro -- resgata sua própria literatura, esquecida há 11 anos. E ele dá uma ótima explicação para esse hiato entre uma obra e outra "Não sou poeta 24 horas por dia. É algo que surge espontaneamente". Senti-me aliviada ao ler isso. Se Ferreira Gullar pode dar uma ótima desculpa para se ausentar dos textos, por que eu não? Sei que o segredo de um blog está no fluxo de seus posts. Quanto menor o intervalo, maior o número de seguidores, mais comentários, mais audiência. E aí tantos blogs interessantes sobre vidas privadas que se tornam públicas se multiplicam e arrebanham seus leitores. Com literatura, é diferente. Não dá para escrever sempre, 24 horas por dia, simplesmente porque as palavras não são fórmulas. Não contamos aqui histórias nossas apenas, esmagadas em cotidianos superficiais. Mas propomos reflexões da e pela literatura. E mesmo quando decidimos expor um pouco de nossas vidas, narramos sentimentos e não fatos. E isso exige um pouco mais. Por isso, caros seguidores, peço -- aliviada -- desculpas pelos intervalos literários. Uma justificativa endossada por ninguém menos que Ferreira Gullar. (Daniela Diniz)

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O fenômeno da autoajuda

Adoro rankings e listas. Por isso mesmo, já escrevi aqui que faço a minha própria. Dos piores e melhores livros, passando claro, pelos medianos. Classifico-os por meio de estrelas -- de zero a cinco. Só dou cinco quando o livro realmente é muito bom, quase perfeito, na minha concepção de simples leitora, claro, e não de crítica literária. Por adorar rankings, fuço sempre as tradicionais listas dos mais vendidos nas livrarias. E há anos não vemos novidade por aí. Exceto quando José Saramago ou Chico Buarque lançam algum título, o que costuma imperar nessas listas são os livros que viraram filmes recentemente, como o caso de Alice no País das Maravilhas, os religiosos ou de fundo religiosos como A Cabana e todos os que citam Chico Xavier na capa e, principalmente os de autoajuda. É impressionante como livros que trazem superação pessoal e profissional, lições das adversidades ou tratam de fórmulas de riquezas e felicidade vendem. Em todos os campos. Na esfera de negócios, temos aí o sucesso absoluto de James Hunter, com seu O Monge e o Executivo que fala do já batido líder servidor. Na esfera econômica, os livros de Gustavo Cerbasi, o milionário antes dos 30 anos, preenchem as estantes daqueles que torram todo o dinheiro, mas sonham com uma simples equação em 100 páginas que possam levá-los às fortunas. E na esfera pessoal, temos um festival de historinhas. Comer, Rezar, Amar, por exemplo, campeão das listas, é um simples relato da autora que tinha tudo o que queria, mas entrou em depressão após o divórcio e aí viajou ao redor do mundo em busca de sua recuperação. Livro de cabeceira de muitas mulheres pré ou pós divorciadas. Não quero (mesmo) julgar a escolha das pessoas. Confesso que nunca li nenhum desses títulos – nada que vá além de suas orelhas e críticas. Mas sempre me perguntei por que eles vendem tanto. Será que suas histórias são simples, fáceis e fascinantes ao ponto de arrebanhar milhares de leitores ou a humanidade é carente de finais felizes? Será que eles vendem pela propaganda que recebem antes? Pela posição que conseguem nas principais livrarias? Ou por aqueles que, ao entrar com vontade de adquirir algum volume na livraria, se deixam guiar pelo que a maioria já aprovou? Há tantas histórias boas sem lições de moral ou finais felizes, há tanta literatura rica que se perde por aí em meio às capas chamativas e salvadoras dos livros de autoajuda. Os clássicos da literatura e os bons contemporâneos são esmagados por tanta felicidade empacotada. Achar um livro do americano Jonathan Safran Foer em uma livraria, por exemplo, é uma façanha. Se tiver sorte, vai encontrar um exemplar. Eu realmente gostaria de entender esse fenômeno. Você tem alguma explicação? (Daniela Diniz)

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Palavras para dizer

Cena 1, em casa
Um amigo me escreveu: "Achei teu blog bem legal. Até me senti mais inteligente lendo coisas tão inteligentes." Fiquei feliz com o comentário, mas, ao mesmo tempo, li nas entrelinhas: "Vocês são meio pernósticas." Bom, sei que essa provavelmente não foi a intenção do meu amigo, mas não consegui evitar o pensamento.
Cena 2, na redação
Recebemos um inesperado e-mail de despedida. Li a mensagem e nenhuma palavra me soou deslocada. Mas não demorou muito para piscar meu MSN com uma colega de trabalho mostrando-se indignada com o fato de no texto constar a palavra "doravante". Outra palavra que a irritou foi "aguerrida".
Cena 3, ligando os pontos
O e-mail do meu amigo e o MSN da minha colega de trabalho me fizeram perceber que envelheci. Ok, doravante realmente é quase um arcaísmo (olha outra palavrinha velha), mas qual o problema com a sonora, forte, firme aguerrida? Gosto dela e isso provavelmente me faz soar antiquada no ambiente super-hipermoderno de uma redação de internet. Trocando em miúdos: já tiraram com a minha cara por falar "balbúrdia" ou "inexiste" ou sei lá o quê. Só não entendo por que teria de usar "não existe" se há uma só palavra para exprimir essa ideia. Ou por que dizer que um lugar está "zuado", se está uma balbúrdia. Ou seja, só há uma palavra para cada coisa. Ou, como diria Mario Quintana: "Confesso que até hoje só conheci dois sinônimos perfeitos: nunca e sempre."
Cena 4, divagações
Por isso que às vezes o jornalismo me cansa com essa ideia de que só se podem usar "dizer" ou "afirmar" para declarações. E comentar, prometer, indagar, indicar, interpelar, sugerir, anunciar? Quando leio alguns textos de gente mais jovem e não menos lida percebo que às vezes falta a palavra exata para o que querem dizer. E não que nunca a tenham visto ou lido, mas porque raramente a usam. A palavra se perde.
Cena 5, conclusão
Possivelmente sou meio formal ou pernóstica (apesar de odiar essa palavra e seu significado). Mas não me importo. É bom ter uma ampla gama de palavras às quais recorrer para exprimir uma ideia com mais precisão. Prefiro ser antiquada a ser banal. (Leda Balbino)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Um futuro sem leitores?

Qual não foi minha surpresa quando fui dar uma espiada no blog na noite de sexta e me deparei com o post da Dani, tratando do mesmo artigo que pensava em abordar como próximo tema. Só liguei o computador à noite porque havia lido o texto no ônibus, voltando do trabalho. E ele me tocou exatamente no mesmo trecho que chamou a atenção da Dani: "A questão mais funda e, no limite, sem resposta, é saber se no futuro haverá leitores de Kafka." Coincidências assim explicam por que somos amigas. O artigo de Hatoum também me fez lembrar de uma entrevista que Umberto Eco concedeu ao Sabático em 13 de março (http://migre.me/AUVL), em que afirma, categórico: "Eletrônicos duram dez anos, livros duram cinco séculos." O tema da entrevista era o lançamento da obra "Não contem com o fim do livro", em que discute a perenidade da obra em papel. Para justificar sua certeza sobre a imortalidade do livro, Eco diz: "Os eletrônicos chegaram, mas percebemos que sua vida útil não passa de dez anos. Assim, quem poderia afirmar, anos atrás, que não teríamos hoje computadores capazes de ler os antigos disquetes? E que, ao contrário, temos livros que sobrevivem há mais de cinco séculos?" Mais adiante, quando questionado sobre qual a diferença básica entre o conteúdo disponível na internet e o de uma enorme biblioteca, ele diz: "Uma biblioteca é como a memória humana, cuja função não é apenas a de conservar, mas também a de filtrar. Já a internet é como o personagem Funes, de Jorge Luis Borges, cuja capacidade de memória era infinita, incapaz de selecionar o que interessa. Esse é o problema básico da internet: depende da capacidade de quem a consulta, da vivência pessoal." A resposta expõe uma inquietação que não deixa de ser semelhante à de Hatoum. No futuro, independentemente da sobrevivência do livro, haverá leitores de Kafka? Haverá pessoas com a capacidade de identificá-lo e com a vivência para nele reconhecer um grande escritor? Em resumo: no futuro, haverá leitores? (Leda Balbino)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sobre o Kafka digital

O livro digital caiu no gosto da crítica. A mais nova li hoje de manhã no jornal O Estado de S. Paulo. A coluna de Milton Hatoum -- Livro – Um objeto Anacrônico questiona, assim como já fizemos em posts anteriores, o futuro das boas e velha páginas em papel. Interessante o olhar positivo que ele joga sobre o assunto: o texto na tela seria, para ele, apenas uma alternativa ao livro. O leitor compulsivo que viaja constantemente pode perfeitamente (e de uma forma compreensiva) abrir mão de carregar os pesados títulos que arrancam olhares de curiosidade dos passageiros ao redor. Afinal, isso cansa e pesa. O leitor que se delicia na busca por novos e próximos títulos em sua estante, porém, não abriria mão desse prazer por nada (esse é meu caso e parece ser o dele também). Em sua visão otimista, há espaço para os dois leitores: o do papel e o da tela. Diferentemente de alguns escritores (e até do que já dissemos aqui), Hatoum não se opõe ao livro digital – “afinal qualquer texto de Kafka, na tela ou no papel, será um texto de Kafka”. Refleti e concordei. Não importa como meu futuro filho irá ler Kafka – importa sim, que ele leia. E essa é uma pergunta mais profunda que, como Hatoum bem colocou, ainda não temos resposta. (Daniela Diniz)

O texto na íntegra de Milton Hatoum está em http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100430/not_imp544881,0.php

Clarice mais uma vez


Segue abaixo mais um texto de Clarice Lispector que reencontrei nas andanças pelas agendas velhas. Só não o coloquei no post anterior porque é muito grande. Mas aí está. (Leda Balbino)

“ – Escute-me, amigo, a lua está alta no céu. Você não tem medo? O desamparo que vem da natureza. Esse luar, pense bem, esse luar mais branco que o rosto de um morto, tão distante e silencioso, esse luar assistiu aos gritos dos primeiros monstros sobre a terra, velou sobre as águas apaziguadas dos dilúvios e das enchentes, iluminou séculos de noites e apagou-se em seculares madrugadas... Pense, meu amigo, esse luar será o mesmo espectro tranquilo quando não existirem mais as marcas dos netos dos seus bisnetos. Humilhe-se diante dele. Você apareceu um instante e ele é sempre. Não sofre, amigo? Eu... eu por mim não suporto. Doi-me aqui, no centro do coração, ter que morrer um dia e, milhares de séculos depois, indiferenciado em húmus, sem olhos para o resto da eternidade, eu, EU, sem olhos para o resto da eternidade... e a lua indiferente e triunfante, mãos pálidas estendidas sobre novos homens, novas coisas, outros seres. E eu Morto! – respirei profundamente – Pense, amigo. Agora mesmo ela está sobre o cemitério também. O cemitério, lá onde dormem todos os que foram e nunca mais serão. Lá, onde o menor sussurro arrepia um vivo de terror e onde a tranquilidade das estrelas amordaça nossos gritos e estarrece nossos olhos. Lá, onde não se têm lágrimas nem pensamentos que exprimam a profunda miséria de acabar” (conto “Mais dois três bêbados” do livro “A Bela e a Fera”)


segunda-feira, 26 de abril de 2010

A leitura como terapia

“Todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo.” A frase de Marcel Proust resume perfeitamente a busca velada no ato de abrir um livro. Procuramos a nós. Buscamos o nosso íntimo, aquilo que somos, do que somos feitos. Qual matéria nos define. Redescubro reiteradamente essa verdade quando revisito agendas velhas, de um tempo quando havia tempo para minuciosa e cuidadosamente registrar frases, orações e trechos que falaram à minha alma. São tantos. E em alguns não me leio de todo: apenas prevejo algo que nem sei bem de mim. A mais recente incursão aconteceu na noite de sábado, depois de descobrir que neste mês Clarice Lispector completaria 90 anos se estivesse viva (http://migre.me/zoVx). Revirei páginas e páginas à procura das palavras que em mim se disseram. E essa busca nunca é vã. (Leda Balbino)


“Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: ‘você fica com o livro por quanto tempo quiser’. Entendem? Valia mais do que me dar o livro: ‘pelo tempo que eu quisesse’ é tudo que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer” (Clarice Lispector/ conto: Felicidade Clandestina - livro homônimo)

“Amizade é matéria de salvação” (conto: Uma Amizade Sincera – livro: “Felicidade Clandestina”)

“A prece profunda não é aquela que pede, a prece mais profunda é a que não pede mais” (conto: Os Desastres de Sofia – livro: Felicidade Clandestina)

“Tudo se entrelaçou, confundiu-se dentro de mim e eu não saberia precisar se meu desassossego era o desejo de Daniel ou a ânsia de procurar o novo mundo descoberto. Porque despertei simultaneamente mulher e humana” (conto: “Obsessão” – livro: “A Bela e a Fera”)

“’Una Furtiva Lacrima’ fora a única coisa belíssima em sua vida. Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira. Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era. Quando ouviu começara a chorar. Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos. Chorava, assoava o nariz sem saber mais por que chorava. Não chorava por causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela era ‘assim’. Mas também creio que chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até um certo luxo de alma” (livro: A Hora da Estrela)

“Enquanto isso as nuvens são brancas e o céu é todo azul. Para que tanto Deus. Por que não um pouco para os homens” (livro: A Hora da Estrela)

“Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui” (livro: A Hora da Estrela)

segunda-feira, 12 de abril de 2010

A escrita como terapia

Dizem que escrever é terapêutico. Li que até há cursos em que a escrita é o recurso para o autoconhecimento. Acho que esse é um dos motivos para eu escrever. Muitas vezes o faço para desabafar, para tentar verbalizar o que é intangível, inalcançável e, paradoxalmente, indescritível. Muitas vezes o faço para tentar exprimir em palavras o que nem sei bem de mim. Seguem abaixo dois textos que escrevi no ano passado com uma diferença de dois meses entre si. Eles são o retrato do que vivi e vivo ainda hoje. Eles são meu desabafo. E ao expô-los aqui neste blog me lembro de versos de Carlos Drummond de Andrade: “Não, meu coração não é maior que o mundo/ É muito menor./ Nele não cabem nem as minhas dores./ Por isso gosto tanto de me contar./ Por isso me dispo,/ por isso me grito,/ por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:/ preciso de todos.”

A mão nua

Já se passou uma semana, mas não há como se acostumar com a nudez da mão. O roçar dos dedos sente a ausência daquilo que não está, daquilo que virou hábito com o passar do tempo. E agora só parece haver a mão rendida ao vazio, a falta de um vínculo circular, sem começo nem fim, com o outro. A mão nua representa uma quase morte, não de uma pessoa em si, mas de um sentimento, uma promessa, uma intenção. Parece também quase sepultar uma história, construída apesar dos tropeços, das dificuldades, dos desafios – ou, na verdade, exatamente pela mescla destes com as alegrias, realizações, conquistas. A mão nua anda agora sozinha.Não há mais o entrelaçar de dedos. Não há mais os afagos sem permissão.Tudo nela é contido. O gesto para alcançar. O aceno do adeus. A vontade de tocar. A outra mão às vezes vem em seu auxílio, repousa sobre ela para encobrir a nudez, evitar revelar sua vergonha. Que fracasso é esse tão absurdo que causou a perda de algo antes tão familiar? Há ainda como revertê-la? Há alguma chance de recuperar a aliança perdida?

A mão nua 2

A mão continua nua. Mas ela já se acostumou com a ausência. Quem teima em não aceitá-la é o coração, que ainda há pouco acreditava no retorno. Mas a boca que ainda desejo repetidas vezes já me disse não. Então já é mais do que tempo de me convencer que o abraço que às vezes ainda me enlaça é um engano. Que o olhar carinhoso apenas mente. Que a mão em minha direção já não me pertence. Preciso vivenciar esse luto com a verdadeira ausência. Essa presença que mantém uma rotina antiga só prolonga a esperança de que tudo voltará a ser como era. Mas não será. Tudo mudou, e já faz tempo. É tempo de reconhecê-lo. De recolher os pedaços, erguer-se e seguir um novo caminho. Quanto mais espero mais é longa a saudade, a esperança vã. A mão já não sente a ausência. Há de se dar tempo ao coração. (Leda Balbino)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O vocabulário da nova geração

Semana passada, fui jantar com a Leda no nosso restaurante preferido: a Mercearia do Francês, ali em Higienópolis. Depois de colocar a conversa em dia, passamos ao momento literário da noite. Coisas do tipo: o que você está lendo, o que tem escrito, percepções e descobertas da literatura. Foi então que nos deparamos com uma realidade comum: o nosso vocabulário está hoje para a nova geração quase como o vocabulário de Machado de Assis estava para nós quando lemos Dom Casmurro pela primeira vez. Sim, os jovens de hoje – entre 18 e 25 anos, integrantes da chamada Geração Y, têm um jeito próprio de se comunicar: abreviações, gírias e neologismos fazem parte do seu vocabulário. Parecem desconhecer sinônimos belos das palavras mais simples. Ao ouvir algumas palavras como “balbúrdia” , “inexiste” , “irascível” (pronunciadas por nossa amiga Leda Balbino), ou uma simples “pujança”, os olhares saltam. Nunca nenhum deles ouviu tais palavrões (com o perdão do trocadilho). Ou então, ouviu, mas nunca usou. Para nós, soa uma pouco limitado. Para eles, soamos antiquadas. Afinal, o vocabulário é vivo e se renova com o tempo. O interessante, nesse encontro de gerações, é aprender com os novatos . Seria interessante também se eles gostassem de aprender conosco (hum, conosco também parece coisa do passado!) Desconhecer algumas palavras só não é tão cruel quanto derrapar no uso delas. E aí não é apenas um problema de geração, mas um problema de formação. Os exemplos mais básicos encontramos ao nosso lado, entre os próprios jornalistas . Quer alguns? "Namorar com fulano (no lugar de namorar fulano); "Há cinco anos atrás" (quando o há dispensa qualquer tempo), " Quer que pego para você? (ai, essa dói..mas ouvimos tanto); Isso fica entre eu e ela (no lugar de mim e ela). E nosso jantar acabou em risadas, lembrando das novas palavras dos jovens, dos erros mais comuns de nosso português e dos mestres Guimarães e Pessoa, que ousavam em seus vocabulários – mas (e só porque) os dominavam como ninguém. (Daniela Diniz)

quinta-feira, 25 de março de 2010

Reinauguração

Saí do meu antigo emprego em novembro. Comecei no meu novo emprego em dezembro. Voltei ao meu casamento e o desmanchei em inúmeras vezes nos últimos meses. Sofri e desesperei-me, alegrei-me e trabalhei duro para mostrar serviço no admirável mundo novo da internet. E entre tantos sobressaltos e descompassos, confesso, chegando finalmente ao lead: deixei a literatura um pouco de lado, os livros sem instantes, o blog para depois. Mas este sempre chega. E me veio à noite, mais precisamente de madrugada, depois de rascunhar uma matéria que pretendo escrever mais com a pena do que com o teclado. Pena pela história do outro e pelo som que ela faz ao arrastar-se sobre o papel, em confidência. Que vida há mais do que expormos a nossa própria, do que humanizarmos a do outro pondo-nos em seu lugar? Posso fazer as duas. Com o blog, a minha. Com a minha profissão, a do outro. Pretendo prometer que não mais deixarei esse blog de lado, pela sanidade da minha. Pela volúpia de contar-me, expor-me aos olhares dos outros. O que é a literatura, além disso? O que é a literatura além da nudez explícita do que somos, de quem somos, do que podemos ser? Palavras, sou-lhes, na liberdade da construção antigramatical de Fernando Pessoa. Palavras, sejam-me.(Leda Balbino)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Luto Argentino


Sempre olhei a Argentina com olhos de admiração. Simplesmente porque nosso vizinho tem vocação para a cultura e para a sensibilidade. Das tirinhas inteligentes de Mafalda à música genuína de Mercedes Sosa. Falo da Argentina porteña, do tango das ruas, do labirinto de Borges e das fantásticas histórias de Cortázar. Por tudo isso e por algo que nem sempre podemos racionalizar Buenos Aires me encanta. E por tudo isso, fiquei triste hoje ao saber da morte do jornalista/escritor Tomás Eloy Martinez, autor, entre outros de Santa Evita, o romance argentino mais traduzido na história. Não li -- ainda Santa Evita. Descobri Martinez por um romance de muito menos expressão -- O Cantor de Tango. Ao folhear a primeira página do livro, encontro algo do gênero: Buenos Aires para mim é literatura. Comprei o livro imediatamente. Pois é isso que Buenos Aires e o cheiro de seus cafés representam para mim: literatura. O Cantor de Tango não está entre os livros preferidos mas conheci Tomas Eloy por ele. E só isso valeu a pena. Pude ler várias de suas entrevistas mais tarde e alguns de seus textos. Só constatei que a Argentina era dona de mais um escritor talentoso. E mais uma vez, de luto, enterra um pouco da sua história. (Daniela Diniz)

ps: leia post de Ariel Palacios e uma entrevista maravilhosa com Tomas Eloy em http://blog.estadao.com.br/blog/arielpalacios/